História, histórias e curiosidades
Há 166 anos viviam-se na Camacha tempos de grande sufoco e aflição. Não pelo calor característico desta altura, mas porque o mal que grassava no Funchal, ceifando vidas de todas a idades, tinha chegado à Camacha no dia vinte e seis de Julho e, segundo os dados oficiais, terá feito no primeiro de Agosto a sua primeira vítima mortal. A cólera morbus chegou à Madeira no dia vinte e oito de Junho trazida pelo Batalhão de Infantaria nº 1 de Lisboa. Uma semana depois faleceu a primeira vítima e num espaço de um mês alastrou-se por toda a ilha. O Governador Civil implementou várias medidas para combater a epidemia, estabelecendo unidades hospitalares e recolha de donativos através de campanhas sociais. O Administrador do Conselho do Funchal criou as “sopas económicas” que pelo que se depreende de notícias da altura deveriam ser ricas em carne, a fim de combater a fome e a pobreza o que, na sua óptica, eram os principais veículos de propagação da epidemia. Estas sopas foram também implementadas na Camacha, muito provavelmente pela mão dos súbditos ingleses que também as apoiavam no Funchal através do The Committee for the Relief of the Sufferers from Cholera at Madeira (Comissão de Ajuda aos Doentes da Cólera na Madeira). A nível regional não se encontraram referências à realização das ditas sopas na Camacha, mas o Association Medical Journal publicado pela British Medical Association faz uma menção: “There is scarcity of food in the island except meat as the villöes dont like to bring their cattle to town. But the supply has failed only been less abundant and the soup kitchens in S Francisco and Camacha are always provided.” (Há escassez de alimentos na ilha, excepto carne dado os vilões não gostarem de trazer o seu gado para a cidade. Mas o abastecimento só tem sido menos abundante e as cozinhas das sopas económicas de S. Francisco e Camacha estão sempre abastecidas). O texto, baseado numa carta do padre inglês Alex. J. D. D’Orsey, enviada da Madeira no início de Agosto, informa ainda que entre os militares que haviam trazido a doença para a Madeira, depois de sete mortes já não havia casos, que os vilões ao primeiro indício tomavam “pingos” e que a comunidade britânica até ao momento não fora afectada. O que acabou, contudo, por acontecer, pelo menos dois casos são conhecidos, um funcionário de um hotel, cujo nome não ficou registado, e um médico grandemente envolvido na luta contra a epidemia, Dr. Archibald Ross. Este médico inglês de 47 anos, a residir na Madeira desde 1848, tinha passado parte do Verão em Inglaterra. No dia 30 de Agosto regressou à Madeira e logo se envolveu na luta contra a cólera. Num espaço de uma semana andou entre a Camacha, onde instalara a sua família, e o Funchal, socorrendo doentes e diligenciando preparativos para estabelecer um pequeno hospital em sua casa, para socorro dos mais desfavorecidos. Nessa correria, num local ou noutro, acabou por ser apanhado pela bactéria, no caso dele fatal, numa altura em que o número de afectados começava a baixar. Na Camacha, como referido de início, o primeiro caso surgiu no final de Julho e o pico deu-se na segunda quinzena de Agosto, aquando sucederam grande parte das mortes. Os registos paroquiais apresentam 37 óbitos no mês de Agosto, distribuídos por todos os sítios da freguesia, sendo Igreja, Casais d’Além e Achadinha os mais afectados. Nem todos seriam vítimas de cólera, mas é, sem dúvida, um número impressionante, tendo em conta que na altura a Camacha contava com 1610 habitantes e os números oficiais assinalam 49 óbitos provocados pela epidemia, que foi dada por finda em Outubro. Tentou-se apurar quem teria sido a primeira vítima mas uma discrepância entre a data oficial, 1 de Agosto, e os registos paroquiais tornou impossível essa pretensão, dado não existir qualquer registo com essa data. Maria Teresa de Jesus, viúva de José Ferreira de Freitas, de 55 anos, dos Casais d’Além faleceu em 31 de Julho e Genoveva de Nóbrega, casada com Matias Gonçalves de Freitas, 49 anos, também dos Casais d’Além, faleceu no dia 2 de Agosto. Uma das duas terá sido a primeira vítima. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Blue_stage_of_the_spasmodic_Cholera_Wellcome_L0040131.jpg
Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Epidemias da Madeira Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Registos Paroquiais
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Em 1904 chegou o primeiro automóvel à Madeira, em 1912 veio um automóvel pela primeira vez à Camacha e em 1929 são emitidas licenças para automóveis pertencentes a camacheiros. O porquê destes largos anos, para a efectivação de algo que hoje nos é tão trivial, explica-se sobretudo pela demora em criar condições para que isso pudesse acontecer, nomeadamente adaptar ou construir estradas que o permitissem (vide neste blogue Primeiro Automóvel , Viação Acelerada e A Inauguração ) . Chegados os automóveis naturalmente tornou-se necessário o seu abastecimento, mas até o momento não foram encontrados documentos que elucidem exactamente quando e onde se terá iniciado o fornecimento de combustível na Camacha. Em 1941 Pedro da Mota solicitou um auto de vistoria à Direcção dos Serviços Industriais Eléctricos e de Viação para instalar na Achadinha um depósito de petróleo e gasolina. Se isso se efectivou não se conseguiram até o momento encontrar documentos que o comprovem. Em Maio de 1954 a firma Leacock e Cª. Lda. solicitou à Câmara de Santa Cruz licença para instalar no Largo da Achada uma bomba auto medidora de gasolina com depósito subterrâneo e duas chapas esmaltadas com os dizeres “Castrol” e “BP” no edifício Estrela da Manhã. A Câmara deferiu os dois pedidos, apenas com a condição de a localização exacta ser definida por si. Em Novembro do mesmo ano a mesma empresa solicitou à Câmara licença, para levantar quatro metros de calçada na Achada para instalar um tanque subterrâneo. Em Agosto de 1957, a Companhia Portuguesa de Petróleos BP apresentou um pedido à Câmara para instalar uma bomba com o respectivo depósito subterrâneo na Achada, o qual foi deferido para o mesmo local onde se achava instalado o posto solicitado anteriormente. Em Junho de 1960 foi feito novo pedido nos mesmos termos, o qual a Câmara sujeitou a um parecer do arquitecto Luís da Conceição Teixeira (vide neste blogue As metamorfoses da Achada ). Em 1963 foi apresentado novo pedido para, com certeza, adaptar às transformações que então decorriam na Achada. Esta bomba terá sido desactivada entre a década de setenta e inícios da de oitenta, do século vinte. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Câmara Municipal de Santa Cruz
Em Maio de 1837, o jornal Flor do Oceano publicou um anúncio destinado aos proprietários da Camacha, Caniço, S. Gonçalo e Nossa Senhora do Calhau (hoje Santa Maria Maior), no qual se apresentava solução para a falta de água para agricultura, de que todas estas freguesias se queixavam. A proposta assentava na criação de uma sociedade que se encarregasse de prolongar uma levada existente, com origem na ribeira do Juncal (Santana) e que vinha regar Santa Cruz, trazendo-a através do Santo da Serra e Camacha até o Pico do Infante. Segundo o anúncio o projecto já tinha sido apresentado ao Director das Obras Públicas, Vicente Paulo Teixeira, o qual tinha elaborado um mapa e efectuado um orçamento, prevendo um custo de nove contos de rei. Pelo mesmo anúncio foi convocada uma assembleia para o dia 22 de Junho, sendo essa a data-limite para serem aceites subscritores da referida sociedade. Em Março de 1840 o Diario de Governo publicou os estatutos da Sociedade da Nova Levada do Furado, devidamente aprovados pela rainha D. Maria II, nos quais é inequívoca a presença da Camacha enquanto subscritora e naturalmente beneficiária deste projecto: “Artigo 1º A antiga Levada do Furado que rega actualmente nas Freguezias de Santa Cruz e Porto da Cruz engrossada com as agoas aproveitaveis da Ribeira do Balcão, e todas as mais que se acharem perdidas por todo o lanço da nova Levada, será continuada na direcção de Leste ao Oeste pelos altos de Santo Antonio da Serra para vir tambem regar nas Freguezias de Camacha, Caniço, S. Gonçalo e Santa Maria Maior…[i]” Contudo a boa vontade não foi suficiente para levar o projecto até ao fim e passados quarenta e sete anos, em 1887, a Direcção de Obras Públicas tomou a seu cargo a finalização da ambicionada levada. Apesar de se manter o trajecto inicialmente previsto, a Camacha deixou de integrar o lote de beneficiários da água de irrigação, sendo que o Lanço da Camacha, como passou a ser designada a levada entre o Lombo das Raízes (Santo da Serra) e o Caminho do Meio (Funchal) destinou-se a abastecer unicamente o Caniço, S. Gonçalo e Santa Maria Maior. Desconhece-se o porquê desta decisão, mas depreende-se o descontentamento da população camacheira no testemunho do professor do ensino primário na Camacha, Manuel Jesus D’Antas de Almeida, plasmado numa carta publicada no Diário de Notícias em Novembro de 1891 : “No verão, na freguezia da Camacha, os lavradores não podem cultivar hortaliças e outos produtos agrícolas pela falta de agua, e muitos teem-se visto na dura necessidade de semearem pinheiros próximo de suas casas, isto é no meio do povoado, afim de não terem sem nada as suas terras , o que se não daria se a levada do Furado abastecesse esta freguesia.” Luiz d’Ornelas Pinto Coelho, colaborador do Diário de Notícias e veraneante fiel à Camacha, na ultima década do século dezanove, mais que uma vez se referiu a esta situação nas suas habituais crónicas do Verão camacheiro: “ A agricultura lucta n’esta localidade com imensas dificuldades, em consequência da grande falta de aguas de irrigação— e todavia uma das maiores e mais abundantes levadas d’esta ilha, a do Furado, atravessa a Camacha na sua zona mais elevada sem que os seus habitantes tenham a faculdade de se aproveitarem d’aquellas aguas para a irrigação das suas terra! É uma privação iniqua e injusta que os poderes publicos devem remediar, quando e como lhes fôr possível” (vide também neste blogue Levadas Ancestrais). Se e quando esse usufruto terá sido efectivo é um estudo que ainda está em falta efectuar. A obra foi dada por finalizada em 1905 e até 1952 foi a maior levada da Madeira, destronada pela finalização da Levada do Norte nesse ano. Em 1971 foi redireccionada na sequência da conclusão da Levada dos Tornos, tendo este Lanço da Camacha sido aos poucos desactivado. Os anos de abandono e alguns maus-tratos de que tem sido vítima, têm lhe retirado dimensão e quem por hoje lá passa, cada vez menos, tem a percepção da importância que teve outrora. Restam alguns testemunhos, como é o caso de um trágico acontecimento em 19 de Maio de 1946 que nos elucida quanto ao volume de água que então transportava:” No ultimo Domingo cerca das 9,30 horas, quando regressava a casa vinda da missa, celebrada na igreja paroquial da Camacha, foi acometida de um ataque epilético Maria Matilde Teixeira, solteira de 23 anos, do sítio do Ribeiro Serrão, e caindo na Levada da Serra, onde encontrou a morte. A infeliz, a ajuizar pelo facto de ter sido encontrado no chão um embrulho que trazia, devia ter caído na levada próximo da sua residência, sendo arrastada pelas aguas, numa extensão de cêrca de 2 quilómetros. O seu cadáver foi encontrado no sítio do Rochão, por um individuo chamado José Quental, que se apressou a comunicar o facto ao regedor da freguesia. A Maria Teixeira, filha de José Teixeira, o «Pedras», já por diversas vezes havia sido acometida daqueles ataques”[ii] Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Entre 1783 e as primeiras décadas do século vinte a igreja Matriz da Camacha era meramente composta por uma nave única e uma torre sineira. Durante este período sofreu diversas intervenções, apenas para assegurar a sua sobrevivência, dado a sua estrutura original não ser a de melhor qualidade (vide neste blogue As obras na Igreja Matriz e Torre da Igreja). Em 15 de Setembro de 1912 a nomeação do padre João Augusto Faria viria a melhorar substancialmente a pequena e pouco ornada igreja. Numa primeira fase e até 1922 foram contratados Luís Bernes[i] e José Z. Nunes (Cirilo)[ii] a fim de efectuarem trabalhos artísticos no tecto, capela-mor e altares e o engenheiro Sequeira[iii] para projectar melhoramentos na torre. Findos estes trabalhos João Augusto Faria tratou de aumentar o corpo do templo anexando uma capela dedicada ao Santíssimo Sacramento. A edificação da capela lateral ficou terminada em 1925 e para isso contou com o apoio dos seus paroquianos, como se pode ler numa inscrição no retábulo do altar. Especial destaque mereceram Frederico Rodrigues, que ofereceu o frontispício, José João de Freitas e Manuel de Freitas o frontal, José de Quintal a lâmpada e Virgínia de Jesus os lustres. Ainda que a inscrição indique o ano de 1925 como o ano de construção da capela, uma pequena notícia inserida no Diário da Madeira em 28 Agosto de 1926 dá-nos informação mais precisa quanto à sua finalização: “Ficou concluído no sábado último o trabalho do douramento e ornamental da capela do S. S. Sacramento na igreja paroquial da Camacha, onde se realiza amanhã a respectiva solenidade do Domingo do Senhor. A referida capela foi inaugurada no dia seguinte. Executou aqueles trabalhos, que ficaram magníficos, o hábil artista sr. José Z. Nunes (Cirilo).” Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Luís António Bernes ( 1864-1936) Pintor nasceu no Funchal, freguesia de Santa Maria Maior. Fez o curso de Desenhador de Ornamentos da Escola Industrial do Funchal. Tanto em gravura como em pintura deixou variadíssimos trabalhos de elevada qualidade em diversas igrejas da ilha dos quais se destacam: Camacha, Santo António, Ponta de Sol e S. Pedro
[ii] José Zeferino Nunes, Pintor decorador, nasceu em S. Gonçalo em 1884 [iii] Director da empresa Madeira Supply, Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, Diário da Madeira “… And now for Camacha! Manoel led the gray horse to the gate and we climbed to the village where I passed my pleasantest days in Madeira. The dew moistened camellia trees drooping with white flowers as if with snow steeped in the yellow low light of the full moon rising above the ocean, the gray mist in the forests and gorges below; the mystery of shadows, the silence of night, the fragrance of gardens, lading the slumberous air with perfume- not once, nor twice but many times did I gather a rapturous delight from the solemn glory of such nights at Camacha. But there was one walk at sunset that exceeded all others in this Eden of enchantment. It led to a depression between the hills, which was covered with the dense growth of an ancient chestnut forest. The superb masses of verdure were beyond compare. Underneath one walked in a cool and emerald gloom, as in a vast temple. Venerable trunks like pillars supported the leafy roof, and in the vista between them the ethereal azure of the ocean was seen, and the roseate mists of evening trailing over it like a procession of naiads. The splendor of the setting sun crept in here and there under the forest, strewing the mossy floor and the stems of the trees with specks of gold, and suffusing the tree tops with a purple tint like the atmosphere of love. Primeval quietude and peace reigned throughout the serene and majestic glory of the scene. They call this place Valparaiso- the Vale of Paradise[i].” … E agora para a Camacha! O Manoel conduziu o cavalo cinzento até o portão e dai subimos à aldeia onde passei os meus mais agradáveis dias na Madeira. O orvalho humedeceu as camélias de onde caiam flores brancas, como se fosse neve mergulhada no amarelo da luz suave da lua cheia erguendo-se sobre o oceano. A névoa cinzenta nas matas e ravinas, sob o mistério das sombras, o silêncio da noite, a fragrância dos jardins impregnando o ar adormecido com perfume, não uma nem duas, mas muitas vezes eu colhi um deleite arrebatador da glória solene de tais noites na Camacha. Mas houve um passeio ao pôr-do-sol que superou todos os outros, neste Éden de encantamento. Levava a um vale entre os montes, densamente coberto por um antigo bosque de castanheiros. As soberbas massas de verdura eram incomparáveis. Por baixo, caminhava-se numa sombra fresca, verde-esmeralda, como num vasto templo. Veneráveis troncos, como pilares, sustentavam o telhado frondoso e entre eles avistava-se o azul etéreo do oceano e as névoas rosadas da noite arrastando-se sobre ele, como uma procissão de ninfas. O esplendor do sol poente rastejou aqui e ali sob a floresta, pincelando o chão musgoso e os caules das árvores com manchas de ouro e inundando as copas das árvores num tom púrpura, como um clima de amor. A quietude e a paz primevas reinaram em toda a serena e majestosa glória do cenário. Eles chamam este lugar de Valparaíso, o vale do Paraíso.) Samuel Greene Wheeler Benjamin foi um diplomata, jornalista, autor e pintor americano. Nasceu na Grécia em 1837, filho de pais missionários americanos e faleceu em Vermont, USA, em 1914. Entre as suas diversas obras duas delas contêm descrições da Camacha: The Atlantic islands as resorts of health and pleasure de 1878 e The World's Paradises… de 1880, da qual foi transcrito o texto acima. Em nossa companhia, enquanto locais paradisíacos estavam, na opinião do autor: Damasco, Bursa, Bósforo. Esmirna, Quios, Nápoles, Córsega, Menton, Sul de França, Norte de Portugal, Açores, Ilhas do Canal, Ilha de Wight, Bahamas, Fort George Island, Lake George, Bermudas, Tenerife e as Ilhas Sandwich. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] BENJAMIN Samuel Green Wheeler, The World's Paradises: Or, Sketches of Life, Scenery, and Climate in Noted Sanitaria
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Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
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