História, histórias e curiosidades
Não foi a primeira vez que os camacheiros desceram em massa à cidade, fazer valer a sua voz (vide neste blogue A revolta dos camacheiros), mas desta, foi bem mais pacífica. Previsto para dia 31 de Dezembro de 1971, o Cortejo Folclórico e Etnográfico da Camacha acabou por acontecer no primeiro de Janeiro, devido ao mau tempo que se fez sentir no último dia do ano, e deslumbrou as “dezenas de milhares de madeirenses e forasteiros”[i] que o viram desfilar pelas ruas da cidade. Desafiados pela Comissão de Festas de Fim de Ano os camacheiros empenharam-se e levaram ao Funchal “não carros mais ou menos enfeitados, mas um verdadeiro repositório da riqueza etnográfica e folclórica da sua querida freguesia que, teimosamente, continua a lutar pela subsistência de temáticas regionais, quase extintas noutros centros rurais.” Segundo o Diário de Notícias foram muitos os obstáculos que a Comissão de Festas, a Direcção do Turismo da Madeira e a própria comissão camacheira, tiveram de ultrapassar para levar em frente o projecto. Um desses obstáculos teria a ver, eventualmente, com o percurso extenso: saída do Liceu, rua do Mercado Velho, Mercado, Rua Dr. Fernão de Ornelas, Rua do Aljube, Avenida Arriaga, Rotunda do Infante, Rua Cónego Jerónimo Dias Leite, Avenida do Mar, Mercado. O autor do artigo, verdadeiramente impressionado com aquele que classificou de melhor evento do programa de Festas de Fim de Ano, elogiou ainda a capacidade das gentes da Camacha em aproveitar esta oportunidade de promoção da sua terra e enalteceu o “muito esforço, muito trabalho insano, muitas vontades conjugadas, por dar corpo e vida à iniciativa. Mas a comissão do povo da Camacha que procedeu à organização do cortejo ultrapassou todas as espectativas”. Foram 300 figurantes a apresentar o trabalho de mais outras centenas que colaboraram na execução das viaturas que percorreram o Funchal, retratando os diversos temas: vimes, futebol, floristas, serradores, agricultura, serões, namoro, tosquias, tecedeira, sapateiro e sem faltar os bonecos de fogo, o folclore espontâneo dos grupos informais e os grupos de folclore existentes na época, o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha e o Grupo Folclórico Infantil da Camacha. No dia 31 de Dezembro de 1972 repetiu-se o cortejo nos mesmos moldes e segundo o Diário de Notícias num “sucesso crescente”. Contudo o sucesso não foi suficiente para assegurar a sua continuidade uma vez que o Cortejo Etnográfico foi entregue, no ano de 1973, à Comissão de Finalistas do Liceu Nacional do Funchal, sob orientação da escultora Manuela Aranha Biscoito. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Diário de Notícias da Madeira - ABM
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Os registos notariais serão, talvez, uma das melhores bases de informação para encontrar referências toponímicas que se perderam no passar dos tempos. Presentes em muitas escrituras, inscritas nos livros notariais depositados no Arquivo Regional da Madeira[i], as nascentes e fontes, para além de serem um precioso bem para aqueles que as possuíam nas suas terras, constituíam também importantes referências que ajudavam a situar as diferentes propriedades.
Na Camacha, fruto das suas características geográficas, existiram ao longo dos tempos uma quantidade considerável de fontes que hoje, na sua maioria, terão se perdido em consequência das grandes alterações na forma de vida da população, de uma maior divisão dos terrenos, da impermeabilização dos solos e ainda outros motivos que não cabe aqui considerar. Graças aos registos notariais chegam até nós os nomes que as designaram através dos tempos, sendo que algumas terão sobrevivido até hoje e fazem parte da listagem que se segue: Fonte da Nogueira; Fonte dos Salgados; Fonte Concelo – Ribeirinha; Fonte da Ribeira dos Vinháticos – Igreja; Fonte da Caldeira - Achadinha; Fonte do Cita Christo - Lombo dos Bravos, na junção da Ribeira Pedro Lourenço com a Ribeira do Porto Novo; Fonte do Sabugo – Algures na margem oeste da Ribeira Pedro Lourenço; Fonte da Galinha – Ribeirinha; Fonte do Covão – Salgados (?); Fonte da Freira – Ribeirinha; Fonte do Forcado – Rochão (?); Fonte da Hortelã – Figueirinha; Fonte do Junco – Figueirinha; Fonte de José Correia- Igreja; Fonte de João dos Piquetes - Lombo Barreto (?); Fonte do Lombo do Pau- Ribeiro Serrão; Fonte do Poço do Louro – Ribeiro Serrão; Fonte da Relva - Ribeiro Serrão; Além destas ainda se encontram referências a outras que, sobretudo por se encontrarem dentro de propriedades, são apenas referidas como fonte nativa e não adquiriram o estatuto de referência toponímica. Apesar da aparente fartura, por um artigo inserido no Diário de Notícias em Setembro de 1896, temos informação que “As próprias nascentes de água potável são, na sua maioria, pessimamente aproveitadas, fornecendo-se ao consumo público em regatos o pôças, expostas a serem inquinadas por toda a espécie de impurezas. Isto explica talvez o facto estranho de se darem, em clima de tantra pureza e tão balsâmicos ares, frequentes doenças do aparelho gastro- intestinal. Há, porém, algumas fontes de grande pureza, completamente ao abrigo de inquinações, sendo a principal na propriedade do sr. Morgado Agostinho de Ornelas e Vasconcelos, que este cavalheiro mandou captar na sua origem, dentro de um bem construído fontenário que generosamente faculta ao consumo publico”. Nesse mesmo ano Manuel Filipe Gomes, regedor da Camacha e vereador na Câmara de Santa Cruz encetava esforços para que fosse construído um fontenário para serviço da população, o que veio a acontecer no ano seguinte (vide neste blogue O marco fontenário). Situado perto da igreja naturalmente que não servia toda a freguesia, contudo só trinta e sete anos mais tarde e na sequência de um surto de febre tifóide atribuído à má qualidade das águas no concelho, as entidades públicas equacionaram a construção de novos fontenários nos sítios do Rochão, Barreiros[ii], Eira Salgada e Achada. Pelos anos quarenta foram construídos um fontenário nas Carreiras e um outro no Ribeiro Fernando. Já no final da década de cinquenta, a Eira da Cruz e a Ribeirinha beneficiavam também de uma dessas estruturas que a rápida transformação social sequente, tornou obsoletas. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Muito do que hoje nos é absolutamente trivial, um dia terá sido excepcional novidade. Apesar de não se terem encontrado, até ao momento, testemunhos, quer escritos quer de tradição oral, facilmente se pode conjecturar o espanto e o deslumbre, decorrentes da chegada à Camacha do primeiro carro pesado de mercadorias, pertencente a um camacheiro. Esse singular momento terá ocorrido entre o final de Janeiro e a primeira quinzena de Fevereiro de 1932. A viatura, de marca Whippet, saiu da fábrica em Toledo, Ohio, nos Estados Unidos em 1929. Chegou a Portugal em 1930 e foi adquirida por César Augusto Santos, residente em Santa Luzia, no Funchal, que a registou nos serviços de Viação da Circunscrição da Madeira em 15 de Março desse ano, tendo lhe sido atribuído o número 1082. A 27 de Janeiro de 1932 a Empresa Camachense de Automóveis, Limitada, sociedade por quotas sediada na Camacha, adquiriu essa viatura, tendo efectivado o negócio o seu sócio-gerente Frederico Rodrigues. Passados quinze dias o carro pesado, destinado a aluguer, mudou de proprietário passando para a mãos de Frederico Nóbrega Rodrigues, de vinte e três anos, residente no Vale Paraíso, filho de Francisco de Nóbrega e Virgínia dos Santos Rodrigues. Passado um ano, no mês de Novembro o carro foi vendido para o Funchal, no ano seguinte mudou de novo de mãos, tendo acabado em 1935 nas mãos da Associação de Bombeiros Voluntários Madeirenses. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) ABM- Direcção dos Serviços Industriais, Eléctricos e de Viação da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal
*Foto original em Adelaide, Australia - September 25, 2016: Vintage 1929 Willys Whippet Tourer Driving On Country Roads Near The Town Of Birdwood, South Australia. Stock Photo, Picture And Royalty Free Image. Image 85300950. (123rf.com) No final de Agosto de 1929 chegou à Madeira, vinda no vapor Gonçalo Velho, uma imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, destinada à Camacha. Segundo a notícia inserida no Diário da Madeira, a imagem media 1,70m sendo a maior estátua, desta devoção, que existia à época na Madeira. No início de Setembro, saindo da Alfândega do Funchal, a imagem foi colocada numa capela improvisada no sítio do Vale Paraíso, onde ficou a aguardar a realização da festa do Sagrado Coração de Jesus, prevista para o dia 22 desse mês. Entretanto um operário “que recebeu há tempos uma graça especial da Senhora de Fátima que consistiu na cura duma terrível moléstia quando já se encontrava desenganado dos médicos”[i], iria construir um altar, a ser colocado à direita da capela do Santíssimo Sacramento, para acolher a imagem na Igreja Matriz. No dia da festa, após a cerimónia religiosa celebrada ao meio-dia, saiu uma imponente procissão, da qual faziam parte todas as confrarias da freguesia, numerosas crianças, cinco andores, “muitos pendões”, cruzes e uma banda de música, com destino à capela onde estava a imagem, no Vale Paraíso. Aí chegado o cortejo, a imagem foi benzida e integrada no séquito que regressou à igreja, colocando-a no altar propositadamente construído para esse fim. Em 1933, por iniciativa do padre João Augusto Faria, foi construída a capela de Nossa Senhora do Rosário para onde, presumivelmente, a imagem terá sido transferida. Do seu primeiro altar desconhece-se o destino. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] ABM, colecção de jornais, Diário da Madeira. A notícia não refere o nome do operário
A princípio terá sido pacífico, não havia água no Caniço vieram à serra buscar. A partir do momento que a Camacha ganhou entidade própria e a sua população começou a crescer terão começado os desentendimentos[i]: para os heréus das levadas que corriam para o Caniço a água era sua e a lei reconhecia-lhes esse direito, para os camacheiros ficava o sentimento de injustiça e a reivindicação de um bem que viam cair dos céus, brotar das fontes e correr na ribeira junto às suas propriedades, mas que lhes era negado com base num direito ancestral sustentado em leis de 1493 e 1502.
A do Pico do Arvoredo era uma dessas levadas, cuja madre se localizava nos altos do Rochão e cujas águas foram sendo disputadas, ao longo do tempo, entre os “legítimos” proprietários, do Caniço, e os camacheiros que, regularmente, faziam “sacadas de torrões” para poderem regar as suas culturas. A situação era complexa porque na realidade muitas pessoas do Caniço dependiam dessa água, para a vida do dia a dia, pelo que periodicamente os heréus vinham à Camacha à sua procura, e destruíam as sacadas que consideravam um atentado à sua propriedade. A situação arrastou-se ao longo dos anos, criando tensões recorrentes, até que a 29 de Agosto de 1912, sob os auspícios de Aires de Ornelas, que cedeu a sua quinta para o efeito, de Manuel Jesus de Antas e Almeida, professor do ensino primário, e Frederico Rodrigues, proprietário; como testemunhas, e Manuel Plácido de Freitas, proprietário; em representação dos outorgantes, foi assinado um acordo entre um grupo de pequenos proprietários, maioritariamente da Figueirinha e Rochão, com terrenos nas margens da Ribeira da Quebrada e do Ribeiro da Hortelã ou Passinho, e os heréus da Levada do Pico do Arvoredo, representada pelo presidente da sua comissão administrativa, o padre Francisco Ascensão de Freitas, do Caniço. Basicamente o acordo estabelecia a obrigação da comissão da Levada construir dois poços para entancar águas, dos referidos cursos de água e das fontes do Charco dos Porcos e da Hortelã, na Figueirinha, por forma a garantir as necessidades dos lavradores locais que por seu lado se comprometiam a deixar de fazer as sacadas, com que desviavam o fornecimento de água à levada. Segundo o mesmo acordo a gestão da água dos poços ficava a cargo dos trinta e quatro signatários camacheiros. Foram eles: Luís Teixeira Neves e Maria de Jesus; José António Teixeira Júnior e Maria de Freitas; Maria de Nóbrega viúva de Manuel Teixeira de Jesus; Gabriel Vieira Prioste e Virgínia de Jesus; Maria de Nóbrega viúva de João Rodrigues; João Rodrigues e Maria de Jesus; Manuel de Freitas; Manuel Barreto e Maria de Jesus; António Rodrigues e Maria de Freitas, todos moradores na Figueirinha, António Barreto; José Barreto e Genoveva Baptista; João Teixeira Batoque e Maria de Gouveia; António Gonçalves e Perpétua de Jesus; Francisco Gonçalves e Rosa de Sousa; Manuel Gonçalves e Maria Baptista; Aleluia Baptista viúva de Manuel de Freitas; Manuel de Quintal Roque e Maria de Jesus; Manuel de Quintal; Manuel Teixeira; Francisco Teixeira, todos do Rochão e ainda Manuel Rodrigues e Perpétua de Nóbrega residentes na Ribeira das Cales. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) |
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
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