História, histórias e curiosidades
Em dia de mais um aniversário abaixo se transcreve o Alvará inscrito no Livro da Chancelaria da Ordem de Cristo através do qual D. Pedro autoriza a criação da freguesia da Camacha:
“Eu o Principe como Regente, e Governador dos Reynos de Portugal, e Algarves, e do Mestrado, Cavalaria, e ordem do nosso Senhor Jesus Christo, fasso saber aos que este meu Alvará virem que o Reverendo Bispo da Se da cidade do Funchal da Ilha da Madeira, do meu Conselho D. Frei António Telles da Sylva me representou por sua petição a urgente necessidade que havia no dito bispado de se criarem novas paroquias, em rezão de muitos anos a esta parte depois da criação das ultimas que foram as de Sam Pedro, e Sam Martinho, haver cresido tanto o Povo dentro do limite de algumas freguesias, que por este… e pella distancia das Igrejas não sam os freguezes moribundos assistidos com aquela presteza que se requere, principalmente em tempos de Inverno com ribeiras caudolozas, aspereza de caminhos, rochas e montes de que a ilha sé abundante, e ainda os saons não poderem sem perigo, e dificuldade assistir aos ofícios divinos, e frequência dos mesmos sacramentos; pedindo-me como Mestre que sou da dita ordem, que por ser conveniente ao serviço de Deos, e bem das almas, lhe desse meu consentimento, e faculdade para criar e erigir de novo alguas Igrejas Parochias e ministros competentes para ellas nas partes onde sam necessárias. No território da Camacha freguesia do Canisso uma vigairia, aplicando ao novo vigairo o mantimento de um Beneficiado da dita Igreja do Canisso… Hei por bem, e me praz, e faculdade como com efeito dou, e consedo por este meu Alvará para que o dito Bispo possa criar e erigir as ditas novas parochias… António de Oliveira de Carvalho a fez em Lisboa aos vinte e oito de Dezembro de seiscentos setenta e seis anos Antonio Sousa de Carvalho a fez escrever Principe”[i] Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com
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Cantemos todos um hino Que já nasceu em Belém O Nosso Jesus Menino[i] Faz parte da memória de gerações aquele momento entusiasmante em que finda a Missa do Galo começam as desfilar os grupos de Pastores, entrando na igreja entoando louvores ao Menino, trazendo presentes e cultivando uma saudável concorrência entre os diferentes sítios da freguesia, tentando cada um ser eleito na voz do povo, o melhor grupo, o mais afinado e com presentes mais luzentes. Sabemos que é uma tradição antiga, o quão antiga não é fácil estabelecer. Da década de trinta, do século vinte, sobreviveram uma marcha do Ribeiro Serrão e uma outra do Sítio da Igreja, ambas registadas na publicação Retalhos, de Maria Augusta Correia de Nóbrega, em 1994, colocando nessa data a certeza desta prática. Antes disso, até ao momento não se encontram facilmente referências a este costume na Camacha. No Diário da Madeira, no primeiro dia de Janeiro de 1914, pode ler-se que: Com muito brilho e esplendor realisou-se este anno a tradicional festa da noite do Natal: tendo o povo d'esta freguezia, no acto solemne da cerimonia religiosa oferecido valiosos presentes ao revº padre Faria, seu estimado vigario, o que constitue uma manifesta prova das sympathias que em pouco sua revª grangeou n'esta freguezia. Sem fazer, propriamente, alusão ao termo “Pastores”, esta notícia é a referência mais antiga, encontrada até o momento, sobre este costume que ainda hoje é vivido intensamente na localidade. No mesmo jornal, em vinte e dois de Dezembro de 1927, uma pequena notícia dá-nos conta do uso enquanto tradição: ” Realiza-se a festa do Natal á meia noite, havendo sermão pelo verº pároco João Augusto de Faria. O templo apresentar-se-á lindamente ornamentado. Como nos outros anos será queimado bastante fogo á entrada dos «pastores» e em seguida á festa.” Num conjunto de regras relativas à missa da noite de Natal que o Bispo do Funchal fez publicar nos jornais, também em Dezembro do 1927, destaca-se a que diz respeito à “tradicional entrada dos pastores na igreja” que sendo um “costume tão arreigado” continuaria a ser autorizado nas igrejas por toda a ilha. Infelizmente, até ao momento, não se encontraram testemunhos de camacheiros ou de visitantes que descrevam mais em pormenor o decorrer desta prática tão rica em pormenores etnográficos, desde os ensaios de preparação, o lote de presentes, as indumentárias, a romaria. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com)
A noção mais difundida e genericamente aceite é de que os ingleses procuraram a Camacha para fugir ao calor do Verão no Funchal. Efectivamente e com base nos diversos testemunhos escritos que se podem encontrar com relativa facilidade, assim terá sucedido maioritariamente. O testemunho que se transcreve abaixo[i] deixa antever outra realidade e fornece mais algumas pequenas peças do puzzle da história desta localidade: Recordações da Madeira durante o Inverno de 1844-45 “Mas nunca me esquecerei da minha primeira cavalgada até à Camacha, uma pequena aldeia a cerca de sete milhas do Funchal, lugar de duas ou três quintas inglesas. Depois de cavalgar por uma hora sobre o áspero pavimento da Madeira, descendo e subindo várias ravinas, contorcendo-me, virando e serpenteando entre belas colinas, cujos lados eram, então, uma massa de tojo amarelo, tendo atingido uma elevação de cerca de três mil pés, cheguei a uma estrada suave e macia que corre ao longo de um planalto, com terreno ondulado e selvagem em ambos os lados. Galopei alegremente, com a pequena aldeia diante de mim. O ar revigorante, tão diferente do clima enervante do Funchal, fresco, mas não frio e tão leve e doce. A atmosfera clara e brilhante, sem uma nuvem tingindo o céu, que, de um azul profundo, parecia incomum e magnificamente distante. A suavidade da estrada, o cenário aberto, as pequenas casas e a torre da igreja, empoleiradas, entre as árvores ao longe, era tudo muito inglês. O dia era inglês, fresco e outonal e os meus pensamentos, naquele momento, estavam nas coisas inglesas e em casa. A ilusão logo se dissipou, pois, virando por engano para a direita e fazendo uma ligeira subida da aldeia, encontrei-me num pedaço de relva macia e plana que parecia ser delimitada por uma descida íngreme. Galopei até a borda, e a Madeira, na sua característica glória, estava novamente diante de mim. Uma terra nobre estendia-se entre mim e a costa, quebrada e convulsionada num cenário soberbo. Rochas, vales e arvoredo, exibindo todas as variedades de cores sob o sol radiante e pitorescas cristas cinzentas que se erguiam aqui e ali, lançando sombras ousadas sobre a encosta da montanha. Em locais como estes os mercadores ingleses estabelecem pequenas e confortáveis quintas, rodeadas por belas plantações de castanheiros e abetos. Sendo a localização tão encantadora, a surpresa para mim sempre foi que as pessoas a trocassem pelas ruas fechadas e abafadas do Funchal. Claro, o clima (especialmente no Inverno) é, devido à elevação, extremamente variável, mas o que é isso para um inglês? Apesar das pesadas nuvens e nevoeiros que por vezes envolvem a localidade, apesar dos furacões que às vezes varrem as colinas, eu diria que o Inverno é a época ideal para desfrutar destes lugares: com o frequente céu sem nuvens e a atmosfera fresca do lado de fora, e uma lareira brilhante e bom ânimo dentro de casa. O hospitaleiro Sr. Bean, da Camacha, em cuja bonita quinta há sempre uma boxe para o seu cavalo e onde a sua lareira arde vivamente na época do Natal, é dos poucos que residem, mais ou menos, durante todo o ano na aldeia. A chama alegre na casa deste, verdadeiro, descendente da Velha Inglaterra, faz sempre bem ao coração de muitos homens, depois de uma longa cavalgada pelas colinas. Assim entre a casa de negócios e a quinta, entre o Funchal e a Camacha, Santo da Serra, Monte ou onde quer que seja que o mercador madeirense passa o seu tempo sem grande mudança, é, talvez, a mais agradável existência de monotonia que já pude observar” “RECOLLECTIONS OF MADEIRA DURING THE WINTER OF 1844-5 But I shall never forget my first ride to Camàcha, a small village, about seven miles from Funchal, and the locale of two or three English quintas. After an hour's riding over the rough Madeira pave, descending and ascending various ravines, twisting, turning, and winding through beautiful hills, the sides of which were then one mass of yellow furze, having reached an elevation of some three thousand feet, I came upon a smooth soft road running along a tract of table-land with wild undulating ground on either hand. I cantered gaily along, with the little village before me. The bracing air, so different from the enervating climate of Funchal,– fresh, but not cold, and so buoyant and sweet; the clear bright atmosphere, not a cloud tinging the sky, which, of a deep blue, looked unusually and magnificently distant; the smoothness of the road; the open down-like scenery, and the little cottages and church-spire perched among the trees in the distance, were all quite English. The day was English, fresh and autumnal; and my thoughts at that moment were of English things and home. The illusion was soon dispelled; for turning by mistake to the right, and making a slight ascent from the village, I found myself on a soft level piece of turf which appeared to be bounded by a precipitous descent. I cantered to the edge, and Madeira, in its characteristic glory, was again before me. A noble country stretched between me and the coast, broken and convulsed into superb scenery. Rock, glen, and wood, exhibiting every variety of colour under the gladdening sunshine: and quaint grey ridges that rose here and there, casting bold shadows over the mountain side. In such spots as these also do the English merchants lay out snug little quintas, surrounded by beautiful plantations of chesnut and fir. The situation being so charming, the surprise to me always was, that people should ever exchange it for the close, muggy streets of Funchal. Of course, the climate (in winter especially) is, on account of the elevation, an exceedingly changeable one; but what of that to an Englishman? In spite of the heavy clouds and fogs which sometimes envelope the country; in spite of the hurricanes that sometimes sweep over the hills; I should say winter was the time to enjoy such places– with the frequent unclouded sky and fresh atmosphere without, and a bright hearth and good cheer within. Hospitable Mr B_, of Camàcha, at whose pretty quinta there is always a stall for your horse, and whose bright fire burns bravely at Christmas time, is among the few who reside more or less all the year round in the country. The cheerful blaze at the house of this true scion of Old England has done many a man's heart good after a long ride across the hills. Thus between counting house and quinta between Funchal and Camàcha, the Serra the Mount, or wherever else it may be the Madeira merchant passes his time, and without any great change. It is, perhaps, the most pleasant existence of monotony that ever came under my observation.[ii]” Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Há uns anos a esta parte deixou-se de ver e ouvir este nome vernáculo, tão madeirense, atribuído ao fruto da planta Sechium edule, também conhecida noutras partes por chuchu ou caiota. Generalizou-se o uso do nome “pimpinela”… nas etiquetas de supermercado, nas ementas dos restaurantes… influenciado provavelmente pelo corrector do dicionário português que só aceita “pimpinela”. Até mesmo as pessoas que desde sempre haviam usado o vocábulo pepinela começaram a duvidar da rectidão do termo. Começaram a achar que pepinela seria o termo … como se diz na Madeira com intenção de desprestigiar …” de campo”, “vilhão”. Não é de agora a confusão dos termos. Já Carlos Menezes, ilustre botânico madeirense e co-autor do Elucidário madeirense alertava para a incorreção do termo “pimpinela”: “Pepinela. Os madeirenses dão este nome ao Sechium edule, planta da família das Cucurbitaceas a que em Portugal se chama de chuchu ou caiota. Esta última designação era muito usada outrora na Madeira, mas hoje está abandonada tendo mesmo sido esquecida pelo povo. Algumas pessoas alheias a estudos botânicos costumam dar o nome de pimpinela à nossa pepinela, quando é certo que não existem relações algumas entre as duas plantas. A pimpinela de Portugal é uma rosácea (Sanguisorba minor) que já vimos cultivada na Madeira, mas não se vulgarizou, havendo também um género de umbelíferas denominado Pimpinela, no qual entram a Herva doce e outras espécies. (…) A pepinela já existia na Madeira nos princípios do século XIX, sendo os seus frutos conhecidos então de muita gente pelo nome extravagante de pepinos nelas, do qual derivou, segundo parece, a palavra pepinela”. O termo caiota, embora tivesse deixado de ser usado de forma generalizada, continuou, e continua, a ser usado por algumas pessoas na Camacha, embora na maioria sob a corruptela “canhota”. O termo pepinela continua a ser usado oralmente, mas infelizmente no registo escrito a luta está perdida…não há forma de convencer que “pimpinela” é outra planta. Além do mais, segundo origem “extravagante” do termo pepinela, para usar o adjetivo usado por Carlos Menezes, só seria pimpinela se os pepinos se passassem a chamar “pimpinos”! Aida Nóbrega Pupo @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Silva FA and Meneses CA (1946). Elucidário Madeirense (1998 fac-simile ed. Vol. III). Funchal: Direcção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC).
Realiza-se no próximo dia 8, na paroquia daquela aprazível estancia, a festa da Imaculada Conceição que, …” Numa linguagem um pouco menos arcaica, este poderia perfeitamente ser o parágrafo inicial de um anúncio em qualquer jornal ou rede social, a informar o que, eventualmente, irá decorrer na próxima semana, no referido dia, na Igreja da Camacha, dado que esta festa religiosa com data fixa, há muito que é celebrada com maior ou menor envolvência popular. O restante texto da notícia inserida no Diário de Notícias, em cinco de Dezembro de 1920, traça-nos um esboço de uma vivência diferente da dos dias de hoje: “…este ano reveste um brilhantismo desusado, sendo feita a expensas de 4 proprietários daquela localidade. Na véspera haverá vistosas iluminações a electricidade, para o que já se acha montada a respectiva máquina, e haverá muito fogo de artifício, como o de Viana do Castelo.” A notícia refere ainda os horários de missa com particular relevo para o nome do padre convidado, que iria fazer o sermão, e à banda que competia animar o arraial. Sendo uma festa de final de Outono, talvez por isso, nunca terá alcançado a notoriedade de outros arraiais camacheiros, contudo nas notícias encontradas entre o final do século dezanove e as primeiras décadas de vinte salientam-se, quase sempre, as diferentes bandas filarmónicas a animar o adro e o fogo de artifício, confirmando a existência da parte profana associada à festa religiosa. Apesar de ser um culto antigo, só depois de 1854, com a proclamação do dogma imposta pelo Papa Pio IX, em oito de Dezembro, é que se terá começado a celebrar esta data. Desconhece-se quando exactamente a paróquia da Camacha terá integrado esta celebração no seu calendário anual sendo que a referência mais antiga, encontrada, remonta a 1889. Uma notícia do Diário de Notícias em 1898 dá-nos conta, de forma mais pormenorizada, do decorrer dos festejos. “Teve este anno extraordinário luzimento a festa da Senhora da Conceição na freguezia da Camacha. Tocou no adro, desde o meio dia da véspera, a phylarmonica dos artistas, e à noite a iluminação produziu um bello efeito. A pequena igreja regorgitava de flores naturaes, dispostas com gosto,por entre os paramentos dos altares. Houve dois sermões de manhã à missa, pregou o revdº cura der S. Martinho, padre Correia; de tarde, à festa, foi orador o revdº João Mauricio Henriques, capelão de caçadores nº 12. A musica de côro foi executada pelos srs. Nunos, com a costumada proficiência. A festividade religiosa concluiu por uma procissão magnifica e extremamente sympathica, como costuma ser a de Senhora de Lourdes no Funchal. Uma multidão de creanças, vestidas de azul e branco, muito decentemente trajadas e enluvadas, pegavam às fitas dos pendões e emblemas, trazendo cada uma uma palma de flores artificiais. O andor da Virgem vinha primorosamente ornamentado; após a confraria da Conceição, seguia a do Sagrado Coração de Jesus, com pendão, paramentos, fitas e flores encarnadas e brancas, tudo na melhor ordem. Fechava o préstito religioso o paleo, levando a cruz o respectivo vigário com outros eclesiásticos, a phylarmonica e muita gente com cirios acesos. O dia correu esplendido, banhado de sol, tépido, como se estivessemos em plena primavera. À serenidade atmosférica, correspondia o socego e tranquiliadade publica, como é de praxe nesta localidade”[i] Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Nesta data Fernando Augusto da Silva, o autor do Elucidário Madeirense, era o padre na Camacha e é muito provável que este texto seja da sua autoria, atendendo à riqueza de vocabulário, distinta das restantes notícias no mesmo jornal.
Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais |
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
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