História, histórias e curiosidades
A levada dos Tornos não existia nos primeiros anos da minha infância, foi terminada só a meados dos anos 60. Lembro-me de estar a ser construído o troço da Camacha e a levada a atravessar os pomares do avô Pimenta, os poios à frente da casa da Tia Angelina. A ela a levada cortou o jardim a meio, depois para a apanhar os “Não-me-deixes” tinha que ir “à outra banda”. Ir à casa dos avós Pimenta ficou mais fácil. Antes tínhamos que dar a volta pelo caminho velho do hotel e descer a pé um caminho muito inclinado com degraus. Caminho que continuámos a fazer quando íamos todos na Festa e no Espírito Santo. O meu pai deixava o carro em cima e descíamos todos a pé… subir era pior, com os mais novos a dormir. Mas para os recados… que jeito dava esta nova levada! Sozinhos não podíamos ir, mas com a Isabel, que trabalhava lá em casa desde muito nova, e ajudou-nos a crescer, já podíamos. Íamos a recados e vínhamos sempre carregados com batatas, couves e fruta. A levada era grande e funda, maior do que as outras. Não foram raras as vezes que nas cabriolices e corridas na esplanada da levada, quando falhava um pé, o caminho até casa era acompanhado de risota acrescida, pelo menos por quem vinha mais sequinho. No inverno a levada vinha bem cheia e não dava direito a brincadeiras. Num dia desses, em que a chuva ameaçava, mas não caía, uma truta enorme a nadar contra a corrente, estática, e o guarda-chuva da Isabel, grande, preto, com uma ponta de metal afiada seguindo em direção à truta. Numa dualidade de sentimentos, entre a angústia pela agonia do animal, incompreensível para o pragmatismo da Isabel criada na ruralidade de Boaventura, e o caricato da situação da arte de pesca, ali ficámos a rir até às lágrimas em frente a uma truta espetada. Não me lembro como foi confecionada. Certamente sem a sofisticação de uma truta à “Belle Meuriére”, mas bem aproveitada. Naquela altura não havia desperdícios, nem esquisitices… quem não gostava…comia menos. Depois, já mais crescidos, com a independência que a adolescência permitia, as idas ao Fojo, às poças da ribeira do Porto Novo…as águas límpidas, cristalinas…todo isto antes da Central da Meia Serra, já se sabe. As tardes quentes, quando as férias iam até 30 de Setembro, em aventuras com os Loja, nossos “vizinhos de férias”. As travessias do túnel dos Salgados, sem luz, bem encostados à pedra para não cair na levada, nem deixar cair o farnel. Que bem que sabia o pão com doce de amora, os ovos cozidos…com o queixo a bater e os dedos murchos de tanto tempo na água fria. A última vez que lá fui foi nos anos 80, quando trazia algum amigo da universidade a conhecer as maravilhas da ilha. Nunca mais lá fui. Não me atrevo…não sou capaz de encarar a destruição provocada pelos distúrbios a montante. Aida Nóbrega Pupo @ CAMACHA - camacha (weebly.com)
0 Comments
As Levadas da minha vida (parte 2 )
Havia também a levada da serragem, que juntava a sua água à que descia o caminho dos moinhos. A levada da serragem vinha em plano e era o caminho mais rápido até à Achada. A volta pela estrada de cima ou pelo caminho velho do hotel ofereciam mais segurança, mas…queríamos nós lá saber disso. Com seis, sete, oito, nove, dez anos, para aviar uma receita na farmácia, ir numa “urgência” à retrosaria da loja do senhor Arnaldo ou às aulas de Francês da menina Aurora, era sempre o caminho mais usado. Na realidade era um caminho perfeitamente seguro, bordejado por plantas, e só bem perto da serragem, por cima da ribeira, a levada sem proteção exigia mais precaução. A única coisa verdadeiramente assustadora nesta levada eram os cães da serragem. Nunca os vi, mas no meu imaginário deviam ser enormes, verdadeiros mastins, ou até mesmo um Cérebro, com cada uma das suas três cabeças a rosnar e a ladrar, prontas para morder. Passava devagarinho, em silêncio, pé ante pé, para não os acordar… não fossem estar soltos. Muitas expedições de subida da ribeira foram feitas, passando pelo poço do “algadate” (água d’alte), em exploração de todos os recantos, sem nunca chegar à levada. Nessas tardes quentes e ensolaradas do mês de setembro, entre aventuras e piqueniques, fortalecia-se a independência e responsabilidade de crianças e pré-adolescentes, longe da vigilância de adultos…só mesmo possível antes dos anos 70… Esta era também a levada para onde íamos apanhar amoras e castanhas, de onde voltávamos todos sujos e picados, e onde nos refugiávamos quando iam matar o porco em casa do avô João Cláudio. Mais longe…mais longe… até quase não se ouvir os gritos angustiados do animal, que sabia. Agora já não existe esta levada, nem a vereda…os terrenos por onde passava tem casas novas, a via expresso…ainda se consegue ver um bocadinho que sobrou, o tal bocadinho por cima da ribeira, que ninguém quer, mas sem água… A levada da serra do Faial, embora bem velhinha só entrou na minha vida mais tarde. A escola do Rochão onde a mãe dava aulas… e eu na primeira classe. Foi o único ano em que andei na escola com ela, depois em cada ano uma professora nova. Não me lembro como é que lá chegávamos. Certamente a pé desde a estrada cá em baixo, a caminho do Santo da Serra, onde o pai nos deixava de manhã antes de seguir para o Funchal. A sério que não me lembro se era fácil ou se era duro, mas custou-me a subir uma vez que lá fui mais tarde…e estava em boa forma. Lembro-me da sala, dos lanches comidos no interior, devido à chuva, do cheiro a pão com marmelada e banana misturado com o cheiro das aparas de lápis. Lembro-me do nevoeiro, do frio, das minhas mãos, depois de as tirar das luvas, que teimavam em não querer escrever, engadanhadas, como se dizia, e o barulho da levada que passava no terreiro à frente da escola…. Mais tarde, os passeios da catequese e atividades da paróquia até a Choupana ou até ao Santo da Serra. A levada tinha sempre água, fresquinha, caminhávamos cantando pela sombra das árvores”… bela polenta cosi. Cia cia pum, cia cia pum…”, sempre na levada… Hoje já se chega à escola de carro, por cima, em estradas que fizeram desaparecer a levada. A levada que sobrou nem sempre tem água, foi desviada para outros locais de consumo… Recuperou-se recentemente parte dela, com um fundo de cimento. Agora os passeios higiénicos, durante o verão, já podem ser acompanhados pelo murmurar tímido da água que lá corre… Aida Nóbrega Pupo @ CAMACHA - camacha (weebly.com) À volta da casa dos nossos pais havia uma profusão de levadas. Se calhar algumas delas não mereciam esse nome eram simples canais de rega que no estio levavam a água de rega marcada, à hora certa. Mas, para mim todas eram verdadeiras levadas. A mais próxima, tão próxima que até passava por baixo na nossa entrada e jardim, era uma levada que descia até ao Caniço. Tinha água todo o ano, não era como as outras que tinham dias e horas. Corria veloz, desde lá de cima, e continuava passando por todos os moinhos, que eram muitos. Antes de cada moinho havia sempre um lavadouro. Mulheres dobradas sobre a pedra, com um tapete de retalhos a “almofadar” para não moer os joelhos, um pilha de roupa semi-lavada, o alguidar de zinco com a “boneca de anil” para branquear, ainda mais, a roupa branca e a roupa com nódoas a corar estendida sobre a erva. Lá em casa havia um poço de lavar, enfiado num quarto de lavar na parte de trás da casa, onde ia uma senhora lavar alguns dias por semana. A senhora Maria, muito velhinha, toda vestida de preto, com um lenço na cabeça e que nos dava beijos molhados com a boca já sem dentes (ai minha rica menina!). A senhora Maria não gostava de lavar algumas peças neste nosso poço de lavar. Ia à levada, atrás do moinho e levava-me com ela. Mas a senhora Maria estava muito velhinha e a senhora Clarinha, que não lavava com sabão azul e só gostava de sabão clarim e OMO, já não ia à levada. Com ela, “democrática”; para quem todas as peças de roupa eram iguais, acabaram-se as idas ao lavadouro. Desapareceu o cheiro a sabão azul, o sol morninho da manhã a bater no chapéu de pano, os pés livres das sandálias inglesas enfiados na água fria, as gargalhadas com as cócegas do musgo aquático a vibrar com a corrente forte da levada e a retirada rápida, assustada, com a advertência de sanguessugas. Mas o fascínio desta levada não desapareceu. Mesmo ao lado havia um moinho por baixo da casa onde vivia a família do moleiro. A única coisa que tínhamos para mandar moer era o milho para as galinhas: -” é para estraçoar, se faz favor”. Até mesmo quando não havia nada para moer arranjava maneira de lá entrar: - Ó Manuela (que era filha do moleiro) vamos ao moinho? Ela não gostava muito, não fosse o pai arranjar-lhe alguma tarefa, mas lá me fazia a vontade. O som da levada já não era o mesmo: a água a cair em cascata para dentro do moinho zumbia com golfadas intermitentes (zuummm… zuummm… zuummm…). Aqui, juntava-se o som cavo e grave das mós a girar em cadência hipnótica, diferente se era milho ou trigo, e de vez quando o chiar dos eixos. Sempre presente o som suave, quase impercetível, das peneiras, grandes, enormes, que separavam a palha das espigas da farinha…alva…cheirosa. O moleiro e a sua família de cinco filhos emigraram para a Austrália no final dos anos 60, o moinho fechou e hoje no seu lugar foi construída uma casa nova… Aida Nóbrega Pupo @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Foto- Grupo de mulheres a lavar roupa numa levada na Camacha – 1932- Álvaro Nascimento Figueira Museu Vicentes
Dentro do parco património edificado na Camacha encontra-se o singelo fontenário localizado perto da Igreja Matriz, na outrora estrada de S. Lourenço e hoje rua Maria Ascensão. Construído em 1897 por iniciativa de Manuel Filipe Gomes (vede neste blogue O Marco Fontenário) caracteriza-se por linhas simples e de caracter sobretudo funcional. Pelo final da década de vinte do século seguinte sofreu algumas intervenções, tanto quanto se sabe para apenas substituir a canalização em ferro que se encontrava degradada e desta feita as obras foram parcialmente suportadas pela Câmara de Santa Cruz. O aspecto mais aproximado do dos dias de hoje aconteceu em 1940, quando o país comemorou o duplo centenário[i] e a Igreja associou-se às comemorações instruindo as suas múltiplas organizações e párocos para prestarem cooperação. Foi neste âmbito que a Juventude Agrária Católica Feminina da Camacha[ii] enviou em Dezembro de 1940 um requerimento à Câmara Municipal de Santa Cruz solicitando autorização para “colocar uma lápide com a efigie de Nossa Senhora da Conceição, Padroeira de Portugal[iii], lápide essa comemorativa do ano glorioso dos centenários”. Obtida a autorização foi colocado o painel de azulejos que ainda hoje encima o fontenário. Este painel e os tantos outros que se encontram pelo país, foram estampados por diversas fábricas de cerâmica e no geral apresentam todos a mesma legenda: "A Virgem Maria Senhora Nossa foi concebida sem pecado original". No mês de Outubro de 1942 Isaura Gomes de Medeiros, presidente da JAGF pediu para colocar dois canteiros de flores em cimento armado, para embelezar a referida lápide, contudo apesar de ter obtido autorização da Câmara não se consegue perceber na actual estrutura se essa intenção se terá concretizado. A actual aparência, nomeadamente a pintura e os painéis de azulejos, resulta de uma intervenção recente ocorrida na última década efectuada pela autarquia local. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Exposição do Mundo Português [ii] Nos inícios da década de trinta a sociedade portuguesa regia-se pelo laicismo e denotava grande indiferença pelas coisas da igreja. Para combater esse clima e na sequência de uma carta do Papa Pio XI (Acção Católica Portuguesa ) em 1933 ao Cardeal Cerejeira foi criada a Acção Católica Portuguesa com o intuito de mobilizar os católicos e assim recuperar o terreno perdido com a implantação da república. Dentro deste organismo multiplicaram-se diferentes secções segundo as idades, sexo e ocupações e foi neste âmbito que se criou a Juventude Agraria Católica Feminina da Camacha. [iii] Imaculada Conceição Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Câmara Municipal de Santa Cruz. Foto original em Chafariz de São Lourenço, Camacha, Santa Cruz, Funchal Mandeira - Fontes, bebedouros e chafarizes (sapo.pt) |
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
Categories |