História, histórias e curiosidades
Perfazem hoje trezentos e quarenta e sete anos que D. Pedro, Príncipe Regente de seu irmão, o Rei Afonso VI, decretou por alvará a criação da freguesia da Camacha. Para que isso fosse possível, teve papel relevante uma capela que Francisco Gonçalves Salgado fez erguer e a ofereceu ao Rei[i]. Criada a freguesia, a capela ganhou estatuto de igreja e a designação de S. Lourenço. A capela não chegou aos nossos dias e até há pouco tempo era dado como certo que a mesma teria sido edificada, algures, no sítio dos Salgados. Um conjunto de documentos, que foram transferidos para o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no final do século dezanove, e que as novas tecnologias tornaram mais fácil o seu acesso, vieram contrariar essa versão, colocando a capela no local onde hoje está a Igreja Matriz da Camacha. Associada à ideia da capela ter sido edificada nos Salgados, está também a informação de a mesma estar em ruínas por volta de 1746. Através de um requerimento do reitor do Colégio da Companhia de Jesus[ii], em 1741, sabe-se que a Ermida de Nossa Senhora da Piedade e São Francisco Xavier, construída pelo cónego teologal João de Saldanha em 1686, no sítio do Pereiro, estava nessa data em ruínas e afigurou-se coincidência a mais, que na mesma década estivessem as duas capelas arruinadas, na freguesia da Camacha, especialmente porque não se localizou qualquer documento que confirmasse a informação relativa à capela de S. Lourenço. Como e quando se terá criado essa convicção, é a base deste pequeno artigo que, assumidamente, se trata de um puro exercício de especulação, com base em algumas informações recolhidas em diversos documentos de diferentes épocas. Que a igreja de S. Lourenço, na freguesia recém criada, era a ermida de Francisco Salgado, isso está patente nos registos paroquiais, quer da Camacha quer do Caniço, dos finais do século dezassete e inícios do século dezoito. A partir de 1738, ano, em que a pequena igreja foi entregue ao padre Manuel Simão de Gouveia, encontram-se apenas referências à Igreja de S. Lourenço, não tendo, no entanto, surgido documentos, ou quaisquer indícios, de uma mudança do local que era o fulcro da freguesia de então. Quando em 1783 foi construída a nova igreja, havia ainda memória da “ermida em que foi erecta”, constando essa informação na provisão do Erário Régio que determinou a nova obra no mesmo local da capela. Por meados do século seguinte essa informação ter-se-ia, eventualmente, perdido, na memória colectiva. Segundo um artigo da Voz do Povo em 1860, António Leandro de Vasconcelos, tetraneto de Salgado, possuía uma escritura que atestava a doação da capela ao rei. O autor do artigo, sobrinho de António Leandro e portanto quinquaneto de Salgado, insurgiu-se contra o estado lastimável da igreja da Camacha, em diferentes artigos no seu jornal, ao longo de diversos anos, sem nunca ter estabelecido relação entre a mesma e a capela construída pelo seu antepassado, como seria natural se tivesse conhecimento de tal facto. A escritura que, provavelmente, António Leandro de Vasconcelos encontrou entre os papeis que herdou dos seus pais, fazia referência a uma capela que já não existia e sem acesso a outras fontes que elucidassem a sua localização, é natural que se tivesse feito a associação Salgado/Salgados, até porque a família em questão possuía uma considerável quantidade de terrenos no citado sítio. Esta é uma possível explicação para a difusão da crença que colocou durante cerca de cento e cinquenta anos a capela nos sítio dos Salgados, contudo não passa, obviamente, de uma mera conjectura. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Para informação mais detalhada vede Calaméo - Da Ermida à Igreja De S Lourenço Da Camacha (calameo.com)
[ii] Vede neste blogue Ermida de Nossa Senhora da Piedade e São Francisco Xavier
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A atender apenas aos documentos, na imprensa madeirense, dir-se-ia que o Natal não se destacava na vida da Camacha, no Dezembro de 1973. O Café Relógio anunciava o seu famoso Frango na Púcara, Carlos Fotógrafo lembrava que tinha um atelier ao dispor dos camacheiros e a Escola Nuno Alvares recebia cento e cinquenta escudos, dádiva da comissão do «DIA MADEIRENSE» em New Bedford. A Festa da Conceição aconteceu, como sempre no dia oito, porém com a novidade de contar, pela primeira vez, com a animação de uma filarmónica camacheira, a Banda de S. Lourenço, nascida em Agosto de esse ano. Apesar da sua tenra idade, a Banda dava já nas vistas, tendo merecido um artigo na revista Madeira—73, intitulado «A Camacha e a sua Filarmónica mista». A Casa do Povo passou por um processo eleitoral, renovando os seus corpos sociais para o triénio seguinte, tendo sido eleitos para a Assembleia Geral: José de Góis, Presidente; António Sérgio Martins, 1º vogal e Adelino de Sousa, 2º vogal. Na Direcção os eleitos foram: Álvaro João de Nóbrega, Presidente; João de Gouveia Fernandes, vice-presidente; José Heliodoro Câmara, tesoureiro; Adelino de Sousa Barreto, secretário e José de Jesus Fernandes, vogal. Independentemente deste processo, a sua equipa de futebol participava no Campeonato Corporativo que englobava equipas de funcionários de Bancos, Caixa de Previdência, Sindicato de Empregados de Escritório, Sindicato de Indústria Hoteleira e sócios da Casa do Povo de Santo António. O seu Grupo Folclórico continuava a fazer brilhar a freguesia, desta feita apresentando-se para um grupo de visitantes luso brasileiros. No dia dezasseis “Terminou em Beleza o 4º campeonato de Hóquei-em-sapatilhas”[i]. Disputado até ao fim, e sempre com grande moldura humana a assistir, teve como 1ª classificada a equipa Águias, seguida de Angola, Primavera, Setúbal, Cova, Estrelas e Mercado. Com relação às estrelas no rinque, o rol de melhores goleadores ficou assim ordenado: José Manuel (Águias) 29; António João (Angola) 21; César (Águias) 21; Rui (Angola) 15; Rogério (Cova) 10; José João (Setúbal) 10; Gastão (Cova) 9; Laurentino (Setúbal) 9; Luciano (Primavera) 9; António Cardoso (Águias) 9; António Branco (Mercado) 8. No aspecto cultural a freguesia vivia um momento de alguma efervescência. O grupo de escoteiros[ii] promoveu um récita, em colaboração com outros jovens da Camacha, que decorreu no salão paroquial, nos dois primeiros domingos desse mês. Sempre com casa cheia, foram apresentados na primeira parte números de comédia, fados e desgarrada. “Os números cantados foram acompanhados por Marcelo em acordeão e Sabino com bateria, além dos fados e algumas canções, em que os próprios cantores tocaram as suas violas e guitarras”. Na segunda parte do espectáculo reinaram os The Pop Kings, sendo o novel agrupamento o verdadeiro responsável pela enchente da casa. O grupo “ formado totalmente por rapazes desta localidade: Egídio com viola-solo, Jorge Emanuel, viola-ritmo, Tiago, viola-baixo e Rogério Barreto, bateria. A sua actuação foi vivamente aplaudida pelos presentes, especialmente pelos numerosos jovens que cantaram em coro algumas canções apresentadas. Cada um dos elementos do conjunto canta bem , mas causou a maior surpresa e admiração, a voz magnífica do jovem Tiago, que elevou ao rubro o entusiasmo dos presentes. Este elemento substituiu o malogrado João Abel, falecido há tempos num desastre, e que foi um dos grandes impulsionadores deste conjunto musical.” Já sem a responsabilidade de todo o evento[iii], preparava-se, também por esses dias, a participação no Cortejo Etnográfico, integrado nas Festas de Fim de Ano, sendo a Camacha responsável pelos quadros alusivos de: charola, borracheiros, pastores, vimes, tear e romeiros, num total de quarenta e dois figurantes, que perfizeram cerca de um terço no total do cortejo. Contudo, nem todas eram boas notícias. A crise do petróleo que afectava o mundo desde Outubro[iv] desse ano, chegou em Dezembro à Camacha e no dia dezassete “dezenas de carros esperaram desde manhã cedo até tarde pelo precioso líquido combustível, desde o Valeparaíso até ao sítio dos Casais d'Além, onde se situa uma das bombas de gasolina desta localidade. Foi de facto um espectáculo inédito e que despertou a maior curiosidade e expectativa da população local.” Mais danoso foi ter chegado, também, à Camacha o surto de assaltos que afectava a Madeira. Na noite de dez para onze, a loja de Arnaldo de Araújo foi roubada. Partindo o vidro da montra, os meliantes levaram algumas dezenas de relógios de pulso, dezenas de anéis de ouro e cerca de cinquenta alianças e pulseiras de ouro, num valor estimado de cem mil escudos. De entre os trinta e seis assaltos, de que havia queixa, este perpetrado na Camacha foi o mais avultado e o que, de certa forma, proporcionou à polícia encontrar o fio à meada e deslindar o caso tendo, apenas seis dias depois, apresentado à justiça os responsáveis, tanto pelos assaltos como pela recepção dos artigos roubados. Nenhum dos criminosos era camacheiro nem aqui residente. Eventualmente, poderá não ter sido o mês de Dezembro mais preenchido em eventos, concernentes à Camacha, contudo o de 1973 destaca-se pela profusão de testemunhos, registados na imprensa da época, e que constituem uma rica fonte de informação que nos permite criar uma imagem mais nítida da vida na localidade. Com um grato e especial reconhecimento, às crónicas da época, do correspondente da Camacha no Jornal da Madeira, Filipe Mota. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Notícias da Camacha por Filipe Mota, no Jornal da Madeira – ABM Colecção de Jornais
[ii] Segundo informação recolhida no site da Paróquia da Camacha, este agrupamento de escoteiros foi efémero, tendo terminado com o 25 de Abril de 1974 e nunca ter chegado a integrar o Corpo Nacional de Escoteiros. [iii] Vede neste blogue Quando a Camacha foi à Cidade [iv] Crise petrolífera de 1973 – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org) ABM – Colecção de Jornais * Camacha de outros tempos - A foto publicada no grupo do Facebook está identificada com a data de 1972, no entanto a notícia no Jornal da Madeira coloca-a em 1973 No dia 14 de Dezembro de 1930, pelas 23h e 25 minutos, faleceu em Lisboa, aos sessenta e quatro anos, Aires de Ornelas Vasconcelos, devido a uma doença do foro oncológico. Segundo a imprensa da época “Não tinha o extinto qualidades de atracção que o impusessem desde logo, à simpatia de quem com êle trocasse uma simples palavras ou um mero cumprimento. Era de aparência rígida, ao modo inglês, e reservado nêsses primeiros contactos. Tal aspecto—é a opinião de quantos privaram numa certa intimidade— fundia-se na maior simpleza e mais franca amabilidade, desde que o trato fosse além de umas fugidias impressões. O que antes lembraria orgulho, reconhecia-se, afinal, ser um instintivo acanhamento que só se dissolvia na continuidade da conversa. E, então, aparecia em toda a plenitude, o homem modesto, afável e bondoso que a todos cativava com os primores do seu espírito e do seu grande coração.” Conquanto tenha sido este o homem[i], foi o militar, o político e o escritor[ii] que marcaram de forma indelével a memória dos seus feitos que, naturalmente, engrandecem e orgulham a terra onde nasceu. Terá sido dentro desse espírito que, no mês de Junho de 1967, a Câmara Municipal de Santa Cruz deliberou encarregar o seu presidente, João Militão Rodrigues, de promover as “diligências necessárias para que seja executado um busto do Conselheiro Aires de Ornelas a colocar no Largo da Achada”, um espaço que à época se encontrava em obras de beneficiação[iii]. Na sessão camarária de 10 de Agosto, do mesmo ano, foi deliberado assinar um contrato com o escultor Pedro Augusto Franco dos Anjos Teixeira, para a execução de um busto com setenta a setenta e cinco centímetros de altura, cujo custo foi de cinquenta e sete mil escudos. No dia dezoito do mesmo mês o busto foi exposto na Academia De Música E Belas– Artes Da Madeira, para apreciação de diversas entidades, entre elas o Chefe do Distrito, comandante Camacho de Freitas, o Presidente da Câmara de Santa Cruz e ainda familiares de Aires de Ornelas. Apesar da celeridade com que foi contratado e concluído, o busto só conheceria o seu poiso final em Julho de 1969, aquando da inauguração do parque na Achada da Camacha. O seu descerramento foi o primeiro acto do coronel António Braancamp Sobral, Governador do Distrito, assim que entrou no parque e antes das demais instalações que foram destacadas nesse procedimento inaugural (vede ponto iii das referências). A finalizar a homenagem ao Conselheiro Aires de Ornelas, D. Maria de Ornelas Szezerbinski, sua sobrinha, depôs um ramo de flores na base do busto. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Vede neste blogue Conselheiros Camacheiros
[ii] Informação mais detalhada em Rui Gonçalves Silva - * CONSELHEIRO AIRES DE ORNELAS - Militar, Ministro, Monárquico (ruigoncalvessilva.com) [iii] Vede neste blogue Importantes melhoramentos e As metamorfoses da Achada ABM – Colecção de Jornais ABM – Actas da Câmara Municipal de Santa Cruz Prevista para meados de Setembro[i] de 1929, a cerimónia acabou por acontecer quase dois meses mais tarde, decorriam já três dias do mês de Novembro. O que terá condicionado e adiado o evento não ficou registado, mas felizmente o Diário da Madeira deixou-nos um testemunho bastante pormenorizado do evento: “efectuou-se no ultimo domingo, na freguesia da Camacha, com grande brilhantismo, a cerimónia do juramento do grupo de escoteiros ali recentemente organizado, os quais nesse dia fizeram estreia do seu fardamento.
Foi uma cerimónia tocante, sob todo o ponto de vista, tendo a ela assistido muito povo da freguesia e deputações de escoteiros dos grupos de S. Roque e do Funchal. O grupo da Camacha, que conta 64 elementos, forma a alcateia denominada «Nuno Alvares Pereira», subdividindo-se em diversos bandos (lobitos), que tiveram por madrinhas as sras. D. Josefina de Nobrega, D. Augusta Rodrigues, D. Conceição Rodrigues, D. Filomena Pulqueria Jardim de Gouveia e D. Elvira Miranda, as quais, além das lindas bandeiras com que presentearam os seus respectivos grupos, ofereceram-lhes em suas residências um delicado almoço. As festas que se seguiram ao acto de juramento dos escoteiros da Camacha foram estusiasticas, sendo a respectiva comissão promotora francamente auxiliada por todo o povo da freguesia destacando-se as pessoas mais gradas da localidade.” A festa foi abrilhantada com a actuação da banda da Escola de Artes e Ofícios, com o patrocínio de Frederico Rodrigues que garantiu o seu transporte na sua, recuperada[ii], camionete S. Lourenço e de José João de Freitas que lhes ofereceu as refeições. O artigo refere enaltece ainda o papel de Manuel Ferreira de Nóbrega e da Empresa de Automóveis Martins & Cª. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Por mera coincidência ou estranho fado, assim como o santo que lhe deu nome, o pequeno autocarro de vinte e dois lugares, baptizado de S. Lourenço, foi vitimado pelas chamas na tarde de dezasseis de Agosto de 1929. Não havia ainda uma semana que a camionete de marca GMC, pertencente a Frederico Rodrigues e à sua recém formada Empresa Camachense de Automóveis, fora baptizada no decorrer da festa de S. Lourenço, num acto formal realizado pelo padre João Faria. Após o baptismo realizou-se uma pequena viagem inaugural, na qual seguiram os músicos da Banda de Santa Cruz, até o Hotel da Camacha, onde se festejou a implementação de um serviço que colocava a Camacha na modernidade de então. Segundo o Diário de Notícias[i] tratava-se de um carro “ bastante confortável” e “construído especialmente para vencer as ingremes ladeiras que tem de galgar, oferecendo por isso a maior segurança”. Logo na primeira sexta-feira, quando se encontrava no Largo do Pelourinho, o “sinistro deu-se na ocasião em que o bilheteiro deitava gasolina no respectivo deposito e foi motivado pelo contacto da vasilha que continha a gasolina com a bateria do carro, o qual produziu uma faísca que originou o incêndio. O bilheteiro do «S. Lourenço» ficou com um braço queimado tendo ido receber curativo ao Hospital Civil. No Largo do Pelourinho compareceu a bomba automóvel nº 1 que chegou ainda a ser utilizada na extinção do incêndio, o qual destruiu, além da carroçaria, todas as mercadorias que se encontravam dentro do automóvel. Os prejuízos são avaliados em 20 contos. “ No mesmo dia Frederico Rodrigues contratou uma camionete do Caniço, para realizar o serviço. Desconhece-se o fim do S. Lourenço. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais,
Relacionados com este tema, neste blogue: O primeiro camião o carro nº740 Carreiras de horário Foto original em: Buses YELLOW COACHES Corporation GMC – Myn Transport Blog (wordpress.com) |
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
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