História, histórias e curiosidades
Uma pequena nota inserida num bloco de “Noticiário Religioso” no Diário de Notícias de 31 de Agosto, de 1930, destacava um evento de elevado valor para a Camacha e até mesmo para a Madeira: “Na Camacha Naquela freguesia realiza hoje a solenidade do SS. Sacramento, com sermão ao Evangelho, música e lindas ornamentações no templo e arredores. Num dos salões do Hotel da Camacha, que acaba de passar por importantes melhoramentos, será hoje inaugurado um Cinema, que estreará fitas de magnífico efeito.” Atendendo ao nível de desenvolvimento na ilha, do início do século vinte, é de facto extraordinário que a Camacha, pequena aldeia serrana, tenha sido beneficiada com uma sala de cinema, muito provavelmente a única existente, na época, fora do Funchal. Uma outra notícia no mesmo jornal, cerca de um mês mais tarde, esmiúça um pouco mais o tema “Com a referida ampliação fica o belo hotel com cerca de cinquenta quartos, todos higiénicos e com muita luz e ar. Ao centro tem um vasto recinto para cinematografo, ao fundo do qual foi construído um pequeno, mas elegante palco para récitas de amadores… Foi um melhoramento importante que só a tenacidade do seu proprietário sr. Frederico Rodrigues conseguiu levar a efeito. Todo o hotel é iluminado a luz eléctrica.”[i] Não foi possível apurar quais “fitas” terão sido projectadas na inauguração, nem em posteriores sessões, eventualmente terão sido algumas das que, então, se exibiam nas salas do Funchal e que aqui se apresentam alguns títulos: O Club 73, O Hipócrita, O Amigo, O Cavalheiro Misterioso, Os milhões de Paulina, Os Filhos do Divórcio, A Noiva 68. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Para informações complementares, vede neste blogue O hotel do sr. Frederico e Central eléctrica da Camacha
ABM – Diário de Notícias - Colecção de Jornais
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Foi na década de vinte, do século passado, que surgiu o aparelho de televisão nos Estados Unidos. No final de 1955 constituiu-se a Rádio Televisão Portuguesa e aos poucos os portugueses foram adquirindo aparelhos e rendendo-se a essa nova forma de entretenimento. Contrariamente ao que hoje sucede, em que as novas tecnologias e os inúmeros gadgets se propagam rapidamente, a generalização da televisão levou bastante tempo a ser alcançada, nomeadamente por questões de capacidade financeira para adquirir o aparelho. Na Madeira a este factor juntava-se o facto de que: quem adquiria uma televisão, dependia das condições meteorológicas para conseguir ver as emissões de Canárias, Marrocos e muito, muito raramente, a emissão de Portugal Continental, uma vez que a tecnologia de então requeria a instalação de um emissor capaz de garantir a difusão dos programas televisivos. Ainda assim, por meados dos anos sessenta já existiam bastantes televisores na Madeira e na Camacha diversos marcavam, também, já presença. Em Julho de 1971 iniciaram-se as obras necessárias para a implantação de uma delegação da RTP na Madeira e à Camacha coube receber o seu emissor e a torre retransmissora principal, que permitiriam aos madeirenses, finalmente, assistir diariamente a alguns programas de televisão. A 1111m de altitude, no Pico da Silva, ergueu-se uma torre metálica com 75m e um pequeno edifício para albergar o emissor. As obras demoraram mais que o previsto devido a condições climatéricas adversas. Em Junho de 1972 iniciaram-se os testes e a seis de Agosto do mesmo ano foi, oficialmente, inaugurada a Delegação da RTP na Madeira. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) ABM – Colecção de Jornais – Jornal da Madeira, Diário de Notícias
RTP 50 anos Televisor – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org) Aquando do povoamento a propriedade das terras foi definida pelas regras estabelecidas pela Coroa e foi tida em conta a condição social do candidato a povoador, bem como as características da área de cultivo. Foi, também, estabelecido um prazo de arroteamento das terras e a obrigação de estabelecer residência, sendo os solteiros obrigados a casar. Com o decorrer dos tempos e o aumento da população criou-se o sistema de colonia, em que o proprietário da terra cedia a sua exploração, com a obrigação do lavrador a tornar arável, de construir benfeitorias e de pagar essa utilização com de metade da produção. Essas primeiras terras foram se dividindo através de doação, troca ou venda e para garantir o seu justo valor foram nomeados Avaliadores. Também designados por Louvados e mais tarde Agrimensores, estes avaliadores não eram funcionários administrativos, nem tinham formação académica específica para tal, eram apenas pessoas idóneas a quem a sociedade local reconhecia capacidades para desempenhar eficazmente a incumbência. Abaixo se transcrevem: um relatório de uma avaliação efectuada em 1775 e uma lista de nomes de pessoas que exerceram o cargo, ambos referentes à Camacha, entre o final do século XVIII e meados do século XIX; “ Digo eu Miguel Martins avaliador ajuramentado pella Camera de Santa Cruz que eu fui chamado por Simão Vieira para avaliar as benfeitorias de hum bocado de fazenda cita ao Agoa d’ alto, no qual bocado de fazenda avaliei todas as benfeitorias, e o maes q’ adiante se dirá: Achei de vinha quatrocentas parreiras que achei valerem/ digo mais des parreiras/ três mil reis Maes hum milheiro de planta de inhame e o avaliei em mil reis Maes oitenta homens de parede a oitenta reis homem faz dezasseis mil reis Somao todas as benfeitorias salvo erro em 20$000 Avaliei maes na fazenda acima declarada um bocado de terra baldia, o qual não avaliei junto com a terra de vinha, e achei que vale 15 mil reis. Passa todo o referido na verdade e por não saber ler nem escrever pedi ao Re José de Freitas Spinola que este por mim fizese e comigo asginase Camacha oje 24 de Mço de 1775. Do avaliador Miguel Martins Re José de Freitas Spinola”[i] 1786 – António de Freitas; 1797 – António de Nóbrega; 1811– António Baptista; 1845 – José de Freitas Gonçalves e João Ferreira; 1847– José de Freitas Gonçalves e João Ferreira; 1851 –João Ferreira; 1853 - José de Freitas Gonçalves e João Ferreira; 1865 – José Correia, alvanéu morador em Igreja. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] ABM- Família Ornelas de Vasconcelos
ABM - Actas das Vereações da Câmara Municipal de Santa Cruz Vieira, Alberto Aprender Madeira- Colonia Almeida, Maria Antónia Pires de, Conceição Andrade Martins (2002), “Avaliador”, Conceição Andrade Martins, Nuno Gonçalo Monteiro (orgs.), A Agricultura: Dicionário das Ocupações, Nuno Luís Madureira (coord.), História do Trabalho e das Ocupações, vol. III, Oeiras, Celta Editora, pp. 290-291. ISBN: 972-774-133-9. Avaliador Em 1830 criou-se, nas freguesias, a Junta da Paróquia, com os deveres de administrar e conservar a igreja e os seus bens, cuidar das fontes, poços, pontes caminhos e baldios, saúde pública e ensino primário. Em 1835 a dita Junta adquiriu poderes de administração local, contudo pouco durou, dado em 1840 as Juntas da Paróquia terem sido excluídas da estrutura administrativa de então. Em 1867 recuperam a responsabilidade de gerir os interesses da locais, mas só em 1878 é que ganharam o estatuto de poder executivo local mantendo, no entanto, a sua ligação à administração da igreja, aspecto que só iriam se dissociar aquando da implantação da república e passaram a se designar de Juntas de Paróquia Civil. Em 1916 passaram a se designar Juntas de Freguesia. Nem sempre aquilo que é criado e determinado em reformas administrativas é implementado como previsto e a Junta da Paróquia é um exemplo disso. Os tumultos populares ocorridos em 1887, na sequência da tentativa do Governador Civil, João Câmara Leme Homem de Vasconcelos, fazer funcionar, sem sucesso, as Juntas da Paróquia na Madeira são indiciadores de que, apesar dos nomes nomeados para as diferentes funções na Junta da Paróquia, nas secções de vereação da Câmara de Santa Cruz, na prática o seu papel na gestão da coisa pública na freguesia, provavelmente, não terá tido a abrangência que a lei previa. A revolta começou em Gaula em 23 Outubro, logo chegou à Camacha e teve o ponto crítico um mês mais tarde no Caniço, tendo a população amotinada invadido a igreja e destruído a casa paroquial. Houve violentos confrontos entre populares e as forças militares que causaram num número de feridos não apurado e a morte de quatro populares. António da Mota, natural da Camacha, foi atingido pelos disparos e ficou com os ossos maxilares destruídos, pelo que necessitou de internamento hospitalar e mereceu destaque de imprensa. De notar também que, a exemplo de outros cargos, por diversos períodos a Camacha perdeu, ao longo do século XIX, os seus representantes, ficando a cargo o Caniço a representação das duas freguesias. Abaixo apresenta-se a lista dos elementos da Junta da Paróquia que foi possível apurar: 1844 — João Ferreira do Pinheirinho e António Emídio de Sousa; 1846 – Manuel Silvério Baptista, José Teixeira das Neves; 1851 — António Emídio de Sousa (em comum com o Caniço); 1868– José Joaquim de Sá, Francisco de Gouveia e Nóbrega; 1869 – António Leandro de Vasconcelos e Miguel Luís Valério ( 1º professor oficial na Camacha); 1873 – José Joaquim de Sá, Francisco de Gouveia e Nóbrega; 1877 —Manuel Filipe Gomes, Januário Ferreira, Gregórios H. de Vasconcelos; 1887—José Joaquim Gonçalves, José de Miranda, Januário Luís Ferreira, Francisco António de Miranda, José João de Freitas Júnior. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) ABM Actas das Vereações da Câmara Municipal de Santa Cruz
ABM – Colecção de Jornais Vieira, Alberto Freguesias- Aprender Madeira Pauleta, Carlos Mendes Freguesias História e Actualidade1 Da leitura das actas das vereações da Câmara Municipal de Santa Cruz, ao longo do século XIX, retira-se que, apesar de nem sempre os camacheiros estarem presentes na estrutura da administração local, não se demitiram de assumir as responsabilidades a que foram chamados.
Enquanto Vereadores, a Camacha contou com três, entre 1822 e o final do século. Os Vereadores de então eram escolhidos entre os membros da elite local e esse papel coube, maioritariamente, a António Leandro de Vasconcelos que o desempenhou intermitentemente entre 1822 e 1875, quase até o fim da sua vida, uma vez que faleceu com a idade de oitenta e quatro anos, em Março 1877. Os seus mandatos foram variando ao sabor das diversas reformas administrativas que se verificaram no decorrer do século XIX e alternaram entre um e três anos, intercalados com alguns períodos em que a Camacha perdeu o seu representante. Para além de Vereador, António Leandro assumiu também o cargo de Juiz (vede Juízes de outrora), de Juiz Almotacel[i] em 1825, de Presidente da Junta da Paróquia em 1869. Ocasionalmente foi também chamado a desempenhar esporádicas funções, como a de Jurado de Abuso da Liberdade de Imprensa, em 1851. Em 1875 o seu filho, Filipe Júlio de Vasconcelos, assumiu o papel de Vereador e eventualmente, a exemplo António Leandro, manter-se-ia largos anos nesse cargo não fora a sua morte precoce, com a idade de cinquenta e dois anos, em Julho de 1877, quatro meses após o falecimento do seu pai. Ainda em 1876 Manuel Filipe Gomes assumiu o cargo de vereador até o final do século, tendo desempenhado também nesse período os cargos de Vice- Presidente e Presidente da Câmara. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Para além de juízes e regedores, outros cargos de serviço público foram desempenhados por diferentes camacheiros, ao longo dos tempos. É um desses cargos de outrora que hoje é objecto neste artigo: o Multador do Finto[i]. O Finto foi um imposto criado em 1668, originalmente destinado a custear as despesas militares do Reino. Em 1722 esse imposto foi restruturado para o Finto dos quatro e meio, fixando um valor de 9000 cruzados anuais, que a Madeira deveria pagar ao Reino. Esse valor deveria ser repartido pelos diferentes concelhos e freguesias, mas ao que tudo indica toda a ilha foi bastante relapsa quanto a essa obrigação. Este imposto foi abolido em 1832, tendo se mantido, a sua colecta na Madeira, até 1861. A cobrança era da responsabilidade das câmaras que faziam eleger nas suas vereações dois Multadores por freguesia. Ao Multador competia repartir pela freguesia os valores estipulados calculando quanto é que cada contribuinte deveria pagar. Os contribuintes eram os cabeças de casal, homens casados ou solteiros e viúvas, que possuíssem rendimentos, ficando parte da população fora destes encargos. Das actas das vereações da Câmara de Santa Cruz, retirou-se a lista que se apresenta abaixo, na qual constam os camacheiros eleitos para desempenharem estas funções em diferentes anos, apenas entre 1814 e 1833, não se tendo encontrado mais, quaisquer, outras referências relativas a este tema que nos permitissem apresentar um quadro mais completo. 1814 – José Miranda e Manuel de Freitas Feitor; 1815 – João Teixeira das Neves e Sebastião Teixeira; 1818 – Francisco Teixeira; 1820 – José de Gouveia, dos Salgados; 1822 – António Emidio de Sousa e Manuel Silvério Baptista; 1823 – José de Miranda; 1826 – Manuel Silvério Baptista, José de Freitas Feitor; 1828 – José Freitas Gonçalves e José Teixeira das Neves; 1829 – José Freitas Gonçalves e José Teixeira das Neves; 1833– José de Freitas Gonçalves, Casais de Além. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] https://www.researchgate.net/publication/327042804_Poder_Municipal_e_Poder_Central_A_Camara_do_Funchal_e_a_Cobranca_do_Finto_na_Segunda_Metade_de_Setecentos
O-DEVE-E-O-HAVER-DAS-FINANCAS-DA-MADEIRA-Vol-I-Financas-Publicas-e-Fiscalidade-na-Madeira-nos-Seculos-XV-a-XXI.pdf (researchgate.net) ABM - Actas das Vereações da Câmara Municipal de Santa Cruz O primeiro que, se tem notícia[i], foi Domingos de Freitas, Juiz da Vintena, em 1796. Estes juízes não necessitavam ter formação, eram eleitos pela Câmara Municipal para exercerem nas pequenas aldeias, com mais de vinte fogos. Em regra julgavam apenas verbalmente e apenas causas de pequeno valor. Nas duas primeiras décadas do século dezanove, surgem-nos referências a Juiz Pedâneo. Assim como o Juiz de Vintena, o Juiz Pedâneo não era, ou não necessitava ser letrado, bastava-lhe ter reconhecimento na sua terra e muitas vezes pertencia à elite das pequenas aldeias onde exercia. Pedâneo advém do facto de julgar de pé, ou seja não existia nas aldeias um local específico para a o juiz exercer a sua autoridade. Sob esta designação surge-nos em 1818 Francisco Teixeira e em 1820 José de Freitas, da Achadinha eleito nesta data para substituir António Emídio de Sousa, também da Achadinha. A Carta Constitucional de 1826 criou a função de Juiz de Paz que veio substituir as anteriores designações e cuja principal competência era a de tentar reconciliação entre partes, a fim de evitar o recurso aos tribunais. Ao longo do século dezanove a função ganhou e perdeu poderes, ora apenas conciliando ora tendo o poder de julgar e sancionar. Segundo o decreto 24º de 16 de Maio de 1832 deveriam ser eleitos pelo povo, em assembleia de chefes de família, ou pelas pessoas que governavam o concelho mas, ao que tudo indica, acabaram por ser “eleitos” nas sessões de vereação da Câmara de Santa Cruz. A sua jurisdição teve inicialmente a duração de um ano e a partir de 1841 teria, por decreto, a duração de dois anos. A avaliar pela lista abaixo, na prática isso não se verificou, para além de que os nomes dos eleitos acabaram por se concentrar, praticamente, num mesmo grupo de pessoas: 1844 - João da Mota, José Teixeira das Neves (1º substituto), José João de Freitas (2º substituto); 1846 – João Teixeira, do Pinheirinho, José João de Freitas Gonçalves, da Achadinha(1º substituto), António Emídio de Sousa, Achadinha (2º substituto); 1851- João Elias Baptista, José João de Freitas(1º substituto), José Teixeira das Neves (2º substituto); 1852 - José João de Freitas, Francisco Gouveia(1º substituto), João Elias Baptista(2º substituto); 1856 -João Ferreira Pinheirinho, António Emídio de Sousa(1º substituto), Francisco de Gouveia (2º substituto); 1857 – António Leandro de Vasconcelos, João Ferreira(1º substituto), Francisco Gouveia(2º substituto); 1859- José Teixeira das Neves, José Joaquim de Sá, Francisco de Gouveia(2º substituto); 1861- António Leandro de Vasconcelos, Manuel Gonçalves(1º substituto), José Teixeira das Neves (2º substituto); 1863 – Filipe Júlio de Vasconcelos, José Teixeira das Neves(1º substituto), José Joaquim de Sá (2º substituto); 1869 – Filipe Júlio de Vasconcelos, José Joaquim de Sá(1º substituto), Manuel Filipe Gomes (2º substituto); 1873- Manuel Filipe Gomes, José Joaquim de Sá (1º substituto). No final do século dezanove a Camacha perdeu o seu juiz devido à junção com o Caniço que sendo mais populoso impunha o seu candidato. Eventualmente terá recuperado com a implantação da República sendo esta função, desempenhada pelo regedor. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] A pesquisa para esta lista foi apenas realizada nas actas das Vereações da Câmara Municipal de Santa Cruz, pelo que este artigo traduz somente esses dados.
Vereações Câmara Municipal de Santa Cruz, Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira A primeira camacheira a colher as flores do seu jardim e a se pôr a caminho do Funchal, para as vender, com certeza nunca imaginou que com essa decisão estaria a lançar uma actividade que faria das suas seguidoras as “madeirenses mais fotografadas do mundo”, como as classificou o Diário de Notícias, num artigo em Julho de 1972[i]. Como já aqui antes referido (Vede Vendedeiras de Flores ) eventualmente essa actividade poderá ter nascido a meados do século XIX, tendo algumas camacheiras substituído a venda de lenha pela de flores. No entanto o suporte documental tem se revelado demasiado parco, para tal se afirmar com toda a certeza. Nas fotografias do Funchal, a partir do final do século XIX, encontram-se diversas que retratam mulheres a venderem flores e apesar de não estarem identificadas como camacheiras, existem outros indícios que nos permitem considerar que efectivamente o seriam. O Diário da Madeira, em Julho de 1913, dava conta numa pequena notícia que “Rufina de Jesus, natural da Camacha, apresentou hontem de manhã queixa no commissariado contra dois individuas que lhe roubaram um ramo de flôres e depois lhe applicaram um sõcco”, o que nos leva a supor que Rufina seria uma vendedeira de flores. Já o artigo no Diário de Notícias, em Setembro de 1929, não deixa margem para dúvidas com o seu apelativo subtítulo “APARECERAM AS PRIMEIRAS VIOLETAS NOS CESTOS DAS «CAMACHEIRAS»”. Conquanto fosse um artigo sobre a chegada do Outono, mereceu destaque o “já é uma nota alegre o cesto da Camacheira que ao sábado nos traz à porta a frescura das flores da sua região”. O artigo de Julho 1972 fornece, também, alguns testemunhos de interesse, nomeadamente o da octogenária que disse exercer a profissão há quarenta anos e que ”quando eu vim vender flores já havia velhinhas nisto! Mas não era aqui! Vendia-se pelos hotéis p’ra lá e pelas portas”. Outra das entrevistadas referiu que “já sou floreira desde os oito anos! Tenho quarenta e seis!”. O artigo não refere nomes das entrevistadas, apenas refere que são naturais da Camacha. Embora os testemunhos escritos sejam poucos a continuidade e prevalência da actividade, até os dias de hoje, fazem desta imagem de marca da Madeira um feito camacheiro, sem esquecer contudo a norma camarária imposta por Fernão de Ornelas[ii] que obrigou ao uso do traje regional, o que contribuiu fortemente para impor a imagem sui generis com que se impôs e a fez sobreviver ao longo dos tempos. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Título do artigo do Diário de Notícias em Julho 1972 da autoria de Luiz Rodrigues e Lurdes Fernandes
ABM – Colecção de Jornais [ii] A 17 de Dezembro de 1936 foi publicada uma Postura sobre vendedeiras ambulantes de flores- A Obra de Fernão Ornelas-MestradoAgostinho Lopes PDF | PDF | Portugal | República (scribd.com) *Foto-Flower seller, Funchal, Madeira, 20th century by Unbekannt (meisterdrucke.uk) No dia 31 de Outubro de 1928 foi inaugurado na Camacha o Dispensário de Santa Isabel, com o objectivo de proporcionar serviços médicos à população menos abonada da localidade. A iniciativa deste estabelecimento partiu da antiga directora do hospital do Instituto Pasteur, em Paris, Mère Catherine de Jésus-Christ, nome religioso adoptado por Augusta de Ornelas e Vasconcelos, irmã, três anos mais nova, de Aires de Ornelas Vasconcelos. Necessidade desde há muito sentida, teve apoio local, tendo Alfredo Ferreira de Nóbrega posto uma das suas casas à disposição[i]. Dois médicos do Funchal: Wiiliam Clode e Antonino Costa, prestaram-se a vir semanalmente à Camacha, à vez, a fim de prestarem serviços “tanto de medicina como de cirurgia, fazendo-se o respectivo clínico acompanhar duma enfermeira do hospital”. William Clode levou ainda mais longe a sua colaboração,..propondo aos proprietários de desnatadeiras que cedessem, cada um deles, uma pequena quantidade de leite (Gota de Leite),[ii] a ser distribuído pelas crianças de maior carência, pela Confraria de S. Vicente de Paulo. Em Março de 1930, a imprensa regional publicou um balanço referente à actividade do Dispensário no ano de 1929: “Doentes atendidos no Dispensário………………..... 462 Visitas médicas domiciliarias …………………………....... 10 Intervenções cirúrgicas…………………………………….......... 25 Doentes hospitalizados …………………………………..............13 Injecções no domicílio dos pobres, cerca de ….100 Também foram aplicadas injecções e feitos pensos a centenas de doentes” A notícia refere ainda que para além dos serviços médicos e fornecimento de medicamentos previstos inicialmente, juntara-se uma enfermeira, Irmã da Congregação fundada por Miss Wilson, que diariamente atendia doentes. Desconhece-se quanto tempo terá perdurado esta instituição. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Não se encontraram mais dados sobre o assunto, sendo apenas possível equacionar a possibilidade de ter sido no edifício da Estrela da Manhã ou no edifício onde hoje funciona a Farmácia da Camacha.
[ii] Segundo a imprensa da época, já tinha instituído o mesmo em Santana. ABM - Colecção de Jornais * Augusta Ornelas Vasconcelos nasceu em 1869 e professou em 1899. A foto deve ser anterior a ter tomado votos. Entre 1901 e 1947 foram emitidos mais de novecentos passaportes[i] a pessoas naturais da Camacha, sendo, na sua grande maioria, camacheiros que procuravam, além-mar, uma vida melhor. Nos primeiros anos do século, até 1910, o Havai foi o destino mais requerido com 67 passaportes, seguido América do Norte (USA) com 42 e do Brasil com 37. A perfazer os 150 dessa década figuram ainda África do Sul e Angola. Na década seguinte, entre 1911 e 1920, a grande leva teve por destino a América do Norte (USA) com 213 pedidos. Seguiu-se o Brasil com 80 e os restantes 39 distribuíram-se por Havai, África do Sul, Canárias, Antígua, Trindade e Tobago e Suíça, sendo este último, claramente, destinado a uma viagem recreativa, uma vez que foi concedido a Aires de Ornelas e Maria de Jesus de Sousa Holsteim. De 1921 a 1930 foram solicitados 137, sendo 57 para o Brasil, 22 para América do Norte (USA) e os restantes distribuídos por África do Sul, Argentina, Canárias, Curaçau, Europa, UK, Guiana, Uruguai e Trindade e Tobago. Neste conjunto encontram-se diversos que terão sido, muito possivelmente, para viagens recreativas para a Europa, no caso de Alfredo Ferreira de Nóbrega, e de Frederico Rodrigues para Canárias. Nos anos trinta, com excepção de 1932, ano em que não foi emitido qualquer passaporte a camacheiros, o Brasil voltou a ser o destino mais procurado com 72, seguido do Curaçau com 45. Os restantes 36 distribuíram-se por USA, África do Sul, Argentina, Antígua, França e Europa. Entre 1941 e 1948[ii] tomou dianteira o Curaçau com 68, seguido do Brasil com 39. A Venezuela surge pela primeira vez na lista de países de destino, com 14 pedidos de passaporte, sendo os restantes para USA, África do Sul, Argentina, América do Sul, Caribe e Europa. Em1943 não houve também camacheiros a emigrar. No somatório final, os Estados Unidos acolheram o maior número de passaportes emitidos neste período, 364 (Havai incluído), seguidos pelo Brasil, 281 e pelo Curaçau 110. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Parte destes passaportes eram familiares o que se traduziu em duas ou mais pessoas a viajar.
[ii] ABM – dados disponíveis na Pesquisa online Mais sobre este tema vede Os emigrantes do último trinténio do século dezanove Camacheira in New Bedford Os jornais constituem uma importante fonte de informação na reconstrução histórica das diferentes épocas salvaguardando, naturalmente, as devidas cautelas. Assim como hoje, uma parte substancial das notícias nos jornais do passado, retratam o que de pior sucedia no decorrer da vida em sociedade do seu tempo. O caso que aqui hoje se traz, é um crime ocorrido em Janeiro de 1912, o qual em nada honra a nossa memória colectiva, apenas aconteceu, foi objecto de várias notícias na imprensa e o destaque que nos merece é, em grande parte, pela forma romanceada, como o mesmo foi relatado no Diário da Madeira[i]: “Accentuadamente criminoso é o caso que passamos a narrar, sob uma impressão de revolta pela sua natureza… No sítio do Ribeiro, à freguezia da Camacha, numa pitoresca estancia verdejante d’arvores e flores, há uma pequena palhosca, mal cuidada, onde reside uma mulher que há 16 anos, por este tempo vivia inconsolável pela falta de um filho, de nome José ***, que se auzentara para o Brazil, levado na onda dos patrícios aventureiros, sonhadores do ouro luzente que dizem haver por essas terras. A mulher, dia e noite, vertia lagrimas pelo filho, esperando o momento em que ele se correspondesse, noticiando a sua boa saúde que ela mais ambicionava do que o dinheiro que tilinta nas suas mãos emagrecidas d’um arruinado da saúde. O espinho da saudade curtia-o ella a sós, e de portas a dentro do lar a tristeza vem substituir a alegria d’essa desolada mãe. Decorria ligeiro o tempo até que foram aparecendo as cartas do filho, traçadas n’uma linguagem rude, mas onde uma ou outra palavra tinha o poder de atenuar o sofrimento da mãe que se não cançava de invocar o nome do filho que partira. Desasseis annos passaram e José *** julga poder realizar o seu plano de adquirir dinheiro sem trabalho nem canceiras… Seduzido pela economias da mãe o *** pensava em vender os bens do casal do seu falecido pae, aconselhando a família a que emigrasse para o Brazil… Ritta, decrepita e acabrunhada pela velhice, respondeu que tinha já os seus dias contados, preferindo acaba-los na sua terra onde possue recordações d’aquelles que lhe foram pedaços do coração. Mas as palavras do filho dominaram tanto a pobre velhinha que um certo dia consente que seu filho lhe reduza a dinheiro a pequena habitação e terreno e as colheitas guardadas do anno findo, para seguirem ella, elle e uma irmã para o Brazil. Até aqui a familia não podia ser tratada com melhor carinho pelo filho… Possuidor da importância de reis 700.000 José sahe de casa com destino ao Funchal dizendo à mãe que vinha tratar das passagens, e em sua companhia traz a irmã Roza tendo-se hospedado n’um hotel à rua da Alfandega até que dali seguiu ao seu destino. Ritta*** estranhando a demora dos filhos resolve procura-los no Funchal, onde ao ser-lhe comunicada a notícia da sua sahida cae desfalecida.” Notificadas as autoridades, o Comissário da Polícia contactou as autoridades de S. Vicente, em Cabo Verde, contudo o telegrama chegou uma hora após a saída do barco Amazon que levava os dois irmãos com destino ao Brasil. Em meados de Abril do mesmo ano, o mesmo jornal informa do regresso de Rosa à Madeira, sem contudo juntar mais qualquer informação quanto ao seu destino. Quanto à mãe[ii], “ reduzida ao maior dos infortúnios, sem lar, sem uma pequena moeda para matar a fome, a desconsolada mulher teve de pedir agasalho em casa d’uma filha cazada que reside na Camacha”. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) *Título da notícia no Diário de Notícias [i] Por consideração a eventuais descendentes foram omitidos da notícia os sobrenomes [ii] O Diário de Notícias refere mais um irmão, que ficou com a mãe e que se pode presumir ter sido propositadamente ignorado pelo Diário da Madeira, eventualmente para ampliar o drama do romance. ABM Colecção de Jornais No dia 7 de Julho de 1840 saiu do porto de Toulon, França, uma expedição com destino à ilha de Santa Helena, com a incumbência de extraditar os restos mortais de Napoleão Bonaparte que se encontravam sepultados nessa ilha. Comandada por François Ferdinand Philippe Louis Marie d'Orléans, Príncipe de Joinville e filho do rei Louis-Philippe Ier (primeiro), levava a bordo alguns dos mais próximos colaboradores de Napoleão que com ele tinham compartilhado o exílio, até a sua morte em 1821. Composta por duas fragatas, La Belle Poule e Favourite, a expedição fez escala na Madeira. Chegou à baía do Funchal no dia 24, do mesmo mês, tendo o Príncipe Joinville, segundo a imprensa da altura[i] “feito uma corrida pela parte leste da ilha” e “ se fez a véla no dia 26 de manhã” Dessa “corrida” fez parte um almoço na quinta de James Bean na Camacha[ii]. Num testemunho da época, Fanny Anne Burney[iii] refere no seu diário “Mr. Bean entertained the Prince at his pretty country house at Camacha; the Ladies of the neighbouring Quintas assembled near the house, where they were introduced to his “Altesse Royale,” and Marshal Bertrand saluted them all with great gallantry! The Prince presented Mr. Bean with a gold Snuff-Box,” (o Sr. Bean recebeu o Príncipe na sua bonita casa de campo na Camacha, as senhoras das Quintas da vizinhança reuniram-se perto da casa, onde foram apresentadas a sua “Alteza Real”, e o marechal Bertrand saudou a todas com grande galanteria! O Príncipe presenteou o Sr. Bean com um caixa de rapé de ouro). O Diário de Bordo de La Belle Poule[iv] faz, também, referência a esse acontecimento “Le lendemain (25), une vingtaine de passagers et d’officiers partent à 5 heures du matin dans une longue promenade à cheval pour découvrir la riche nature de l’île de Madère sous la conduite de M. Montero. On s’arrête pour un déjeuner bien arrosé des vins locaux dans la magnifique propriété d’un riche Anglais.” (No dia seguinte, 25, cerca de vinte passageiros e oficiais partiram às 5 horas da manhã para um longo passeio a cavalo, à descoberta da rica natureza da ilha da Madeira sob a orientação do Sr. Monteiro. Parámos para um almoço, bem regado com vinhos locais, na magnífica propriedade de um rico inglês.) Que a presença do príncipe e respectiva comitiva provocou algum alvoroço entre as senhoras das quintas, muito provavelmente maioritariamente inglesas, depreende-se deste pequeno texto, como terá reagido a população camacheira, infelizmente, não se localizaram, até o momento, quaisquer testemunhos. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] ABM- colecção de jornais – O Defensor
[ii] SARMENTO, Alberto Artur – Freguesias da Madeira [iii]A Great Niece's Journals: Being Extracts from the Journals of Fanny Anne Burney from 1830-1842 [iv] Faire revenir Napoléon en France : reportage exclusif à bord de la Belle Poule en 1840 - napoleon.org * Foto - Por Sophie Lienard - https://www.slam.org/collection/objects/33721/, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=121508011 Perfazem hoje trezentos e quarenta e sete anos que D. Pedro, Príncipe Regente de seu irmão, o Rei Afonso VI, decretou por alvará a criação da freguesia da Camacha. Para que isso fosse possível, teve papel relevante uma capela que Francisco Gonçalves Salgado fez erguer e a ofereceu ao Rei[i]. Criada a freguesia, a capela ganhou estatuto de igreja e a designação de S. Lourenço. A capela não chegou aos nossos dias e até há pouco tempo era dado como certo que a mesma teria sido edificada, algures, no sítio dos Salgados. Um conjunto de documentos, que foram transferidos para o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no final do século dezanove, e que as novas tecnologias tornaram mais fácil o seu acesso, vieram contrariar essa versão, colocando a capela no local onde hoje está a Igreja Matriz da Camacha. Associada à ideia da capela ter sido edificada nos Salgados, está também a informação de a mesma estar em ruínas por volta de 1746. Através de um requerimento do reitor do Colégio da Companhia de Jesus[ii], em 1741, sabe-se que a Ermida de Nossa Senhora da Piedade e São Francisco Xavier, construída pelo cónego teologal João de Saldanha em 1686, no sítio do Pereiro, estava nessa data em ruínas e afigurou-se coincidência a mais, que na mesma década estivessem as duas capelas arruinadas, na freguesia da Camacha, especialmente porque não se localizou qualquer documento que confirmasse a informação relativa à capela de S. Lourenço. Como e quando se terá criado essa convicção, é a base deste pequeno artigo que, assumidamente, se trata de um puro exercício de especulação, com base em algumas informações recolhidas em diversos documentos de diferentes épocas. Que a igreja de S. Lourenço, na freguesia recém criada, era a ermida de Francisco Salgado, isso está patente nos registos paroquiais, quer da Camacha quer do Caniço, dos finais do século dezassete e inícios do século dezoito. A partir de 1738, ano, em que a pequena igreja foi entregue ao padre Manuel Simão de Gouveia, encontram-se apenas referências à Igreja de S. Lourenço, não tendo, no entanto, surgido documentos, ou quaisquer indícios, de uma mudança do local que era o fulcro da freguesia de então. Quando em 1783 foi construída a nova igreja, havia ainda memória da “ermida em que foi erecta”, constando essa informação na provisão do Erário Régio que determinou a nova obra no mesmo local da capela. Por meados do século seguinte essa informação ter-se-ia, eventualmente, perdido, na memória colectiva. Segundo um artigo da Voz do Povo em 1860, António Leandro de Vasconcelos, tetraneto de Salgado, possuía uma escritura que atestava a doação da capela ao rei. O autor do artigo, sobrinho de António Leandro e portanto quinquaneto de Salgado, insurgiu-se contra o estado lastimável da igreja da Camacha, em diferentes artigos no seu jornal, ao longo de diversos anos, sem nunca ter estabelecido relação entre a mesma e a capela construída pelo seu antepassado, como seria natural se tivesse conhecimento de tal facto. A escritura que, provavelmente, António Leandro de Vasconcelos encontrou entre os papeis que herdou dos seus pais, fazia referência a uma capela que já não existia e sem acesso a outras fontes que elucidassem a sua localização, é natural que se tivesse feito a associação Salgado/Salgados, até porque a família em questão possuía uma considerável quantidade de terrenos no citado sítio. Esta é uma possível explicação para a difusão da crença que colocou durante cerca de cento e cinquenta anos a capela nos sítio dos Salgados, contudo não passa, obviamente, de uma mera conjectura. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Para informação mais detalhada vede Calaméo - Da Ermida à Igreja De S Lourenço Da Camacha (calameo.com)
[ii] Vede neste blogue Ermida de Nossa Senhora da Piedade e São Francisco Xavier A atender apenas aos documentos, na imprensa madeirense, dir-se-ia que o Natal não se destacava na vida da Camacha, no Dezembro de 1973. O Café Relógio anunciava o seu famoso Frango na Púcara, Carlos Fotógrafo lembrava que tinha um atelier ao dispor dos camacheiros e a Escola Nuno Alvares recebia cento e cinquenta escudos, dádiva da comissão do «DIA MADEIRENSE» em New Bedford. A Festa da Conceição aconteceu, como sempre no dia oito, porém com a novidade de contar, pela primeira vez, com a animação de uma filarmónica camacheira, a Banda de S. Lourenço, nascida em Agosto de esse ano. Apesar da sua tenra idade, a Banda dava já nas vistas, tendo merecido um artigo na revista Madeira—73, intitulado «A Camacha e a sua Filarmónica mista». A Casa do Povo passou por um processo eleitoral, renovando os seus corpos sociais para o triénio seguinte, tendo sido eleitos para a Assembleia Geral: José de Góis, Presidente; António Sérgio Martins, 1º vogal e Adelino de Sousa, 2º vogal. Na Direcção os eleitos foram: Álvaro João de Nóbrega, Presidente; João de Gouveia Fernandes, vice-presidente; José Heliodoro Câmara, tesoureiro; Adelino de Sousa Barreto, secretário e José de Jesus Fernandes, vogal. Independentemente deste processo, a sua equipa de futebol participava no Campeonato Corporativo que englobava equipas de funcionários de Bancos, Caixa de Previdência, Sindicato de Empregados de Escritório, Sindicato de Indústria Hoteleira e sócios da Casa do Povo de Santo António. O seu Grupo Folclórico continuava a fazer brilhar a freguesia, desta feita apresentando-se para um grupo de visitantes luso brasileiros. No dia dezasseis “Terminou em Beleza o 4º campeonato de Hóquei-em-sapatilhas”[i]. Disputado até ao fim, e sempre com grande moldura humana a assistir, teve como 1ª classificada a equipa Águias, seguida de Angola, Primavera, Setúbal, Cova, Estrelas e Mercado. Com relação às estrelas no rinque, o rol de melhores goleadores ficou assim ordenado: José Manuel (Águias) 29; António João (Angola) 21; César (Águias) 21; Rui (Angola) 15; Rogério (Cova) 10; José João (Setúbal) 10; Gastão (Cova) 9; Laurentino (Setúbal) 9; Luciano (Primavera) 9; António Cardoso (Águias) 9; António Branco (Mercado) 8. No aspecto cultural a freguesia vivia um momento de alguma efervescência. O grupo de escoteiros[ii] promoveu um récita, em colaboração com outros jovens da Camacha, que decorreu no salão paroquial, nos dois primeiros domingos desse mês. Sempre com casa cheia, foram apresentados na primeira parte números de comédia, fados e desgarrada. “Os números cantados foram acompanhados por Marcelo em acordeão e Sabino com bateria, além dos fados e algumas canções, em que os próprios cantores tocaram as suas violas e guitarras”. Na segunda parte do espectáculo reinaram os The Pop Kings, sendo o novel agrupamento o verdadeiro responsável pela enchente da casa. O grupo “ formado totalmente por rapazes desta localidade: Egídio com viola-solo, Jorge Emanuel, viola-ritmo, Tiago, viola-baixo e Rogério Barreto, bateria. A sua actuação foi vivamente aplaudida pelos presentes, especialmente pelos numerosos jovens que cantaram em coro algumas canções apresentadas. Cada um dos elementos do conjunto canta bem , mas causou a maior surpresa e admiração, a voz magnífica do jovem Tiago, que elevou ao rubro o entusiasmo dos presentes. Este elemento substituiu o malogrado João Abel, falecido há tempos num desastre, e que foi um dos grandes impulsionadores deste conjunto musical.” Já sem a responsabilidade de todo o evento[iii], preparava-se, também por esses dias, a participação no Cortejo Etnográfico, integrado nas Festas de Fim de Ano, sendo a Camacha responsável pelos quadros alusivos de: charola, borracheiros, pastores, vimes, tear e romeiros, num total de quarenta e dois figurantes, que perfizeram cerca de um terço no total do cortejo. Contudo, nem todas eram boas notícias. A crise do petróleo que afectava o mundo desde Outubro[iv] desse ano, chegou em Dezembro à Camacha e no dia dezassete “dezenas de carros esperaram desde manhã cedo até tarde pelo precioso líquido combustível, desde o Valeparaíso até ao sítio dos Casais d'Além, onde se situa uma das bombas de gasolina desta localidade. Foi de facto um espectáculo inédito e que despertou a maior curiosidade e expectativa da população local.” Mais danoso foi ter chegado, também, à Camacha o surto de assaltos que afectava a Madeira. Na noite de dez para onze, a loja de Arnaldo de Araújo foi roubada. Partindo o vidro da montra, os meliantes levaram algumas dezenas de relógios de pulso, dezenas de anéis de ouro e cerca de cinquenta alianças e pulseiras de ouro, num valor estimado de cem mil escudos. De entre os trinta e seis assaltos, de que havia queixa, este perpetrado na Camacha foi o mais avultado e o que, de certa forma, proporcionou à polícia encontrar o fio à meada e deslindar o caso tendo, apenas seis dias depois, apresentado à justiça os responsáveis, tanto pelos assaltos como pela recepção dos artigos roubados. Nenhum dos criminosos era camacheiro nem aqui residente. Eventualmente, poderá não ter sido o mês de Dezembro mais preenchido em eventos, concernentes à Camacha, contudo o de 1973 destaca-se pela profusão de testemunhos, registados na imprensa da época, e que constituem uma rica fonte de informação que nos permite criar uma imagem mais nítida da vida na localidade. Com um grato e especial reconhecimento, às crónicas da época, do correspondente da Camacha no Jornal da Madeira, Filipe Mota. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Notícias da Camacha por Filipe Mota, no Jornal da Madeira – ABM Colecção de Jornais
[ii] Segundo informação recolhida no site da Paróquia da Camacha, este agrupamento de escoteiros foi efémero, tendo terminado com o 25 de Abril de 1974 e nunca ter chegado a integrar o Corpo Nacional de Escoteiros. [iii] Vede neste blogue Quando a Camacha foi à Cidade [iv] Crise petrolífera de 1973 – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org) ABM – Colecção de Jornais * Camacha de outros tempos - A foto publicada no grupo do Facebook está identificada com a data de 1972, no entanto a notícia no Jornal da Madeira coloca-a em 1973 No dia 14 de Dezembro de 1930, pelas 23h e 25 minutos, faleceu em Lisboa, aos sessenta e quatro anos, Aires de Ornelas Vasconcelos, devido a uma doença do foro oncológico. Segundo a imprensa da época “Não tinha o extinto qualidades de atracção que o impusessem desde logo, à simpatia de quem com êle trocasse uma simples palavras ou um mero cumprimento. Era de aparência rígida, ao modo inglês, e reservado nêsses primeiros contactos. Tal aspecto—é a opinião de quantos privaram numa certa intimidade— fundia-se na maior simpleza e mais franca amabilidade, desde que o trato fosse além de umas fugidias impressões. O que antes lembraria orgulho, reconhecia-se, afinal, ser um instintivo acanhamento que só se dissolvia na continuidade da conversa. E, então, aparecia em toda a plenitude, o homem modesto, afável e bondoso que a todos cativava com os primores do seu espírito e do seu grande coração.” Conquanto tenha sido este o homem[i], foi o militar, o político e o escritor[ii] que marcaram de forma indelével a memória dos seus feitos que, naturalmente, engrandecem e orgulham a terra onde nasceu. Terá sido dentro desse espírito que, no mês de Junho de 1967, a Câmara Municipal de Santa Cruz deliberou encarregar o seu presidente, João Militão Rodrigues, de promover as “diligências necessárias para que seja executado um busto do Conselheiro Aires de Ornelas a colocar no Largo da Achada”, um espaço que à época se encontrava em obras de beneficiação[iii]. Na sessão camarária de 10 de Agosto, do mesmo ano, foi deliberado assinar um contrato com o escultor Pedro Augusto Franco dos Anjos Teixeira, para a execução de um busto com setenta a setenta e cinco centímetros de altura, cujo custo foi de cinquenta e sete mil escudos. No dia dezoito do mesmo mês o busto foi exposto na Academia De Música E Belas– Artes Da Madeira, para apreciação de diversas entidades, entre elas o Chefe do Distrito, comandante Camacho de Freitas, o Presidente da Câmara de Santa Cruz e ainda familiares de Aires de Ornelas. Apesar da celeridade com que foi contratado e concluído, o busto só conheceria o seu poiso final em Julho de 1969, aquando da inauguração do parque na Achada da Camacha. O seu descerramento foi o primeiro acto do coronel António Braancamp Sobral, Governador do Distrito, assim que entrou no parque e antes das demais instalações que foram destacadas nesse procedimento inaugural (vede ponto iii das referências). A finalizar a homenagem ao Conselheiro Aires de Ornelas, D. Maria de Ornelas Szezerbinski, sua sobrinha, depôs um ramo de flores na base do busto. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Vede neste blogue Conselheiros Camacheiros
[ii] Informação mais detalhada em Rui Gonçalves Silva - * CONSELHEIRO AIRES DE ORNELAS - Militar, Ministro, Monárquico (ruigoncalvessilva.com) [iii] Vede neste blogue Importantes melhoramentos e As metamorfoses da Achada ABM – Colecção de Jornais ABM – Actas da Câmara Municipal de Santa Cruz Prevista para meados de Setembro[i] de 1929, a cerimónia acabou por acontecer quase dois meses mais tarde, decorriam já três dias do mês de Novembro. O que terá condicionado e adiado o evento não ficou registado, mas felizmente o Diário da Madeira deixou-nos um testemunho bastante pormenorizado do evento: “efectuou-se no ultimo domingo, na freguesia da Camacha, com grande brilhantismo, a cerimónia do juramento do grupo de escoteiros ali recentemente organizado, os quais nesse dia fizeram estreia do seu fardamento.
Foi uma cerimónia tocante, sob todo o ponto de vista, tendo a ela assistido muito povo da freguesia e deputações de escoteiros dos grupos de S. Roque e do Funchal. O grupo da Camacha, que conta 64 elementos, forma a alcateia denominada «Nuno Alvares Pereira», subdividindo-se em diversos bandos (lobitos), que tiveram por madrinhas as sras. D. Josefina de Nobrega, D. Augusta Rodrigues, D. Conceição Rodrigues, D. Filomena Pulqueria Jardim de Gouveia e D. Elvira Miranda, as quais, além das lindas bandeiras com que presentearam os seus respectivos grupos, ofereceram-lhes em suas residências um delicado almoço. As festas que se seguiram ao acto de juramento dos escoteiros da Camacha foram estusiasticas, sendo a respectiva comissão promotora francamente auxiliada por todo o povo da freguesia destacando-se as pessoas mais gradas da localidade.” A festa foi abrilhantada com a actuação da banda da Escola de Artes e Ofícios, com o patrocínio de Frederico Rodrigues que garantiu o seu transporte na sua, recuperada[ii], camionete S. Lourenço e de José João de Freitas que lhes ofereceu as refeições. O artigo refere enaltece ainda o papel de Manuel Ferreira de Nóbrega e da Empresa de Automóveis Martins & Cª. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Por mera coincidência ou estranho fado, assim como o santo que lhe deu nome, o pequeno autocarro de vinte e dois lugares, baptizado de S. Lourenço, foi vitimado pelas chamas na tarde de dezasseis de Agosto de 1929. Não havia ainda uma semana que a camionete de marca GMC, pertencente a Frederico Rodrigues e à sua recém formada Empresa Camachense de Automóveis, fora baptizada no decorrer da festa de S. Lourenço, num acto formal realizado pelo padre João Faria. Após o baptismo realizou-se uma pequena viagem inaugural, na qual seguiram os músicos da Banda de Santa Cruz, até o Hotel da Camacha, onde se festejou a implementação de um serviço que colocava a Camacha na modernidade de então. Segundo o Diário de Notícias[i] tratava-se de um carro “ bastante confortável” e “construído especialmente para vencer as ingremes ladeiras que tem de galgar, oferecendo por isso a maior segurança”. Logo na primeira sexta-feira, quando se encontrava no Largo do Pelourinho, o “sinistro deu-se na ocasião em que o bilheteiro deitava gasolina no respectivo deposito e foi motivado pelo contacto da vasilha que continha a gasolina com a bateria do carro, o qual produziu uma faísca que originou o incêndio. O bilheteiro do «S. Lourenço» ficou com um braço queimado tendo ido receber curativo ao Hospital Civil. No Largo do Pelourinho compareceu a bomba automóvel nº 1 que chegou ainda a ser utilizada na extinção do incêndio, o qual destruiu, além da carroçaria, todas as mercadorias que se encontravam dentro do automóvel. Os prejuízos são avaliados em 20 contos. “ No mesmo dia Frederico Rodrigues contratou uma camionete do Caniço, para realizar o serviço. Desconhece-se o fim do S. Lourenço. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais,
Relacionados com este tema, neste blogue: O primeiro camião o carro nº740 Carreiras de horário Foto original em: Buses YELLOW COACHES Corporation GMC – Myn Transport Blog (wordpress.com) Assuntos há que se tornam mais difíceis de abordar, pela dificuldade de encontrar documentos que os sustentem. Esse é o caso das nossas “vendas”. A imagem que muitos de nós ainda guardam é de uma casa, geralmente de dois andares, onde no rés-do-chão funcionava de um lado a venda de mercadorias e do outro a taberna, onde se juntavam os homens. Essa foi a prática que perdurou quase até o final do século vinte. Quando terá surgido na Camacha o primeiro negócio desta natureza é o que se torna mais difícil de localizar. A descrição feita pelo Bispo de Meliapor[i], aquando da sua visita à Camacha em 1813, faz um retrato geral da comunidade e das suas actividades, no entanto nada refere quanto à existência de casas especificamente destinadas à venda de produtos. Por uma acta de Outubro de 1829, sabe-se que a Câmara de Santa Cruz preparava-se para cobrar licença aos taberneiros de Gaula, Caniço e Camacha, tendo instruído os escrivães das freguesias para prepararem uma lista dos mesmos. Embora essa lista, até agora, não ter sido localizada, a referência à necessidade de a fazer confirma-nos, pelo menos, a existência de estabelecimentos desse tipo. De resto a documentação é parca e apenas se pôde contar com o testamento de António de Miranda, em 1865, pelo qual deixou de herança uma mercearia no sítio da Igreja e com um contrato de arrendamento, em 1867, através do qual João Elias Baptista, arrendou a Manuel da Câmara, criado de servir, uma loja em sua casa para fazer de mercearia, também no sítio da Igreja. A partir de 1870, e graças à lista de licenças emitidas pela Câmara de Santa Cruz, obtém-se um quadro mais completo, se bem que apenas quantitativo, destas actividades comerciais, na Camacha, até o final do século XIX. A lista abaixo incide num período de dez anos (70/80) e embora a informação não seja suficiente para deslindar se se tratam de diferentes unidades ou se, eventualmente, alguma será a mesma com diferentes proprietários ao longo dos anos, denota alguma pujança neste tipo de actividade comercial na nossa pequena aldeia rural: António de Miranda- Igreja-Taberna; António de Sousa Jardim- Igreja - Mercearia; António Gonçalves- Vale Paraíso - Taberna; António Rodrigues - Figueirinha- Mercearia; António Teixeira de Vasconcelos- Achadinha - Mercearia; António Teixeira de Vasconcelos Júnior- Casais d’Além - Mercearia; António Vieira de Gouveia - Taberna; Maria (viúva de Domingos de Freitas)- Rochão- Taberna, Padaria; Francisco Joaquim de Sousa - Igreja - Taberna; Francisco de Freitas - Igreja - Mercearia; Francisco de Freitas- Igreja - Taberna Mercearia; Francisco Gonçalves - Figueirinha - Taberna; Francisco Teixeira - Figueirinha - Taberna; Gregório de Vasconcelos - Levada do Pico- Taberna; Jesuína de Jesus - Barreiros, Casais d'Além - Taberna; João da Mota - Rochão - Taberna; João Fernandes _ Pinheirinho - Taberna; João Teixeira “ Batoque”- Rochão- Taberna; Joaquim M de Vasconcelos - Levada do Pico - Taberna; José da Silva - Igreja - Taberna; José Rodrigues - Nogueira - Mercearia; José Vieira - Pinheirinho - Taberna; Justiniano de Freitas - Padaria, Mercearia, Taberna; Manuel de Nóbrega- Casais d’Além - Mercearia; Manuel Ferreira de Nóbrega - Igreja - Taberna; Manuel Teixeira - Igreja- Taberna, Padaria; Manuel Vieira Piza - Levada do Pico- Taberna; Manuel Vieira Prioste - Levada do Pico- Taberna; Maria de Freitas - Eira da Cruz - Taberna; Maria de Gouveia - Achadinha - Taberna; Maria de Nóbrega - Mercearia; Rosalina Baptista - Igreja- Taberna. Pelos inícios do século vinte, o número de estabelecimentos licenciados foi muito semelhante, acrescido apenas de mais quatro unidades, com alguns destes comerciantes a entrar, também, no novo século e as suas casas, porventura, a chegarem aos nossos dias. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] ALMEIDA, Eduardo de Castro e, Archivo de Marinha e Ultramar, inventário: Madeira e Porto Santo, Coimbra 1909. Vol.II, doc.12465, p.333
Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Actas da Câmara Municipal de Santa Cruz * NASCIMENTO, João Cabral - Estampas Antigas da Madeira - 1935 Não sendo um dos motivos que lhe deu notoriedade, acabam por ser surpreendentes os cinco mil e setecentos quilos de lenha que a Camacha ofereceu à Santa Casa da Misericórdia, no dia 1 de Novembro de 1948. Nesse dia decorreu no Funchal, mais precisamente na Avenida do Mar, um Cortejo de Oferendas, organizado pela Comissão Distrital de Assistência que contou com a participação de todas a freguesias da Madeira e Porto Santo, num total de sessenta e três viaturas e a participação de diferentes associações culturais e civis. A Camacha apresentou-se com duas viaturas, nas quais seguiam os referidos quilos de lenha e ainda obra de vimes, produtos da terra e galinhas. No rol de oferendas a única referência a lenha pertence à Camacha, o que nos leva a pensar que esta era, por esta época, uma actividade ainda com relevante importância, não só na freguesia como, eventualmente, no todo da ilha. Olhando mais atrás no tempo vão-se encontrando menções a Serra d’Água, situada abaixo da levada do Pico do Arvoredo e ao que tudo aponta no Rochão, indicativas de actividades madeireiras. Mais explicito que isso, é a descrição do Bispo de Meliapor, em 1813, já aqui antes apresentada, mas que vale sempre a pena relembrar: “O povo da Camacha emprega-se em levar cargas de giesta e lenha para a cidade. Vão à serra sem o embaraço do gelo no Inverno ou do grande calor no estio e na alta noite caminhão à cidade vender aquelles molhos de lenha que regulam de 260 a 400 rs cada um, segundo a sua grandeza e qualidade”[i] No relatório apresentado ao Governador da Madeira, em 1945, por Aires Victor de Jesus, na qualidade de Presidente da Câmara de Santa Cruz, é feita alusão a uma prática antiga na parte alta da Camacha, de intercalar a produção de giesta com o plantio de trigo e centeio, aproveitando o facto de a giesta, depois de ser cortada, para lenha, voltar a crescer graças às sementes que ficavam na terra. Aires Victor de Jesus gabava a qualidade dessa lenha e recomendava a adopção dessa prática para todo o concelho. Entre as duas épocas, atrás referidas, apenas se encontraram, poucas e pequenas, referências, essencialmente pedidos de licença para cortar castanheiros e carvalhos, no Vale Paraíso e Rochão, sem discriminar, contudo, o destino dessas madeiras. Da tradição oral, ficou-nos a cantiga: As meninas da Camacha Quando não tem que fazer Vão à serra buscar lenha E vão prà cidade vender Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] ALMEIDA, Eduardo de Castro e, Archivo de Marinha e Ultramar, inventário: Madeira e Porto Santo, Coimbra 1909. Vol.II, doc.12465, p.333
Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Actas da Câmara Municipal de Santa Cruz A primeira notícia que se encontrou, até ao momento, remonta ao ano de 1858, aquando Lourenço Joaquim de Sousa vendeu a Rufino Ricardo Teixeira, os moinhos que eram de António Emídio de Sousa. Sem documentos que o comprovem, apenas se pode presumir que estes moinhos terão sido construídos por António Emídio de Sousa, na primeira metade do século dezanove. De António Emídio de Sousa apenas se soube que era proprietário, nessa época, de uma considerável quantidade de terrenos, nas duas margens da pequena ribeira. O facto de existir um moinho a cerca de duzentos metros acima, o qual deu ao local onde se encontra, a designação de Bairro do Moinho, que perdurou até os inícios do século vinte, reforça também a hipótese de estes, uns quantos metros abaixo, serem de construção mais recente . De Ricardo Rufino passou, em meados de sessenta[i], para João Elias Baptista e foram os seus descendentes e herdeiros que a partir de 1886 começaram a vender a António Teixeira Vasconcelos, em porções de 1/9, a “casa térrea, coberta de telha, que serve de moinho com duas moendas.[ii]” Em 1899 estava o processo de compra concluído, mas logo em 1900, António Teixeira de Vasconcelos e Genoveva Baptista doaram este moinho a Genoveva Amália Vasconcelos, uma das suas cinco filhas. Em 1910, Genoveva Amália de Vasconcelos e o seu marido, João da Mota, venderam o predito prédio a José Quintal Júnior, dos Casais de Além e a António Gouveia Branco, da Igreja. Esta sociedade manteve-se até o ano de 1957, tendo, então, a parte de José Quintal Júnior sido vendida a Francisco Rodrigues & Filhos, Lda., com morada na Rochinha, Funchal. João Gregório Branco ficou com a outra metade, tendo o moinho, com uma área de quarenta metros quadrados e duas mós, uma com 93cm e outra com 95cm, laborado até o início dos anos setenta. Nos diversos documentos consultados surge outro moinho, no mesmo local, a ser vendido em 1905, por Tomás Tolentino de Vasconcelos, Rufino Teixeira de Vasconcelos e Maria Fernandes de Vasconcelos, ausentes da ilha, filhos de António Teixeira de Vasconcelos e Genoveva Baptista, a João Manuel Teixeira das Neves da Achadinha. Segundo a descrição inserida no acto notarial a venda englobou dois prédios na Achadinha: uma casa sobrada coberta de telha e um moinho com duas moendas. As confrontações descritas colocam a norte um moinho, a leste a ribeira da laranjeira e a sul a estrada. No livro Moinhos e Águas do Concelho de Santa Cruz[iii] encontra-se referência a este moinho num quadro relativo a 1920[iv] e uma outra que atesta a sua existência em 1940, detalhando apenas as duas mós, uma de 62 e outra de 67 centímetros. Desconhece-se quando terá deixado de funcionar. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Carece de confirmação
[ii] ABM Notariais [iii] RIBEIRO, João Adriano; FREITAS, Lourenço de G.;FERNANDES, José Baptista - Moinhos e Águas do Concelho de Santa Cruz [iv] O nome constante no quadro é João Manuel Teixeira Nunes mas pela semelhança com Teixeira das Neves, por não se encontrar qualquer indicação da existência de alguém com esse nome, nessa data, e pela noção da dificuldade que muitas vezes a leitura de documentos manuscritos acarreta, presume-se que se trata do mesmo moinho. No dia vinte e dois de Maio de 1949, no Cais da Pontinha, embarcaram no navio Lima, trinta e sete camacheiros com destino a Lisboa, de onde seguiriam posteriormente para Madrid. Tratava-se do recém formado Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha, composto por doze pares de bailarinos, doze “ tocadores instrumentistas”[i] e o presidente da Assembleia Geral da Casa do Povo, Alfredo Ferreira de Nóbrega Júnior. Acompanhava-os o Sócio Protector da Casa do Povo[ii] e ensaiador do grupo, Carlos Maria dos Santos. Desafiados por António Alberto Monteiro, delegado do Instituto Nacional do Trabalho e director da acção da FNAT, este grupo de “humildes camponeses de um conselho rural” foram representar a Madeira e o país, no Festival Internacional de Danças e Canções de Madrid, que decorreu no “monumental parque El Retiro” no centro da referida cidade, entre três e seis de Junho. Segundo o testemunho do correspondente do Diário de Notícias “milhares de pessoas aclamaram os camachenses, com expontaneidade e entusiamo que se destacava dos aplausos dispensados aos outros grupos”. E assim foi que, com o Baile Corrido, Camacheiras e Baile Pesado, mais com a ajuda do Brinquinho que despertou muita curiosidade, o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha arrecadou um, brilhante, segundo lugar na categoria de grupos mistos, num concurso que, ao todo, reuniu oitenta e oito grupos de dezasseis nacionalidades. Findo o festival o grupo ainda se demorou, com actuações diversas quer em Espanha quer em Lisboa, só regressando à Madeira no dia vinte e cinco de Junho, a bordo no navio Carvalho Araújo. A recebê-los no Porto encontravam-se diversas entidades que com eles seguiram para o Palácio de S. Lourenço, tendo aí sido recebidos pelo Chefe do Distrito, Brigadeiro Rui da Cunha Menezes. Após cumprirem essas obrigações oficiais, foi o regresso a casa onde “ à passagem das viaturas pelos sítios do Vale Paraíso e dos Casais de Além, foram dadas salvas de morteiros, anunciando a chegada os camachenses, atingindo porém delírio quando as viaturas surgiram na Achada da Camacha, em cujo local, numerosas pessoas aguardavam, com entusiasmo, o regresso dos seus representantes no Concurso Internacional de Madrid. Numerosas crianças das escolas oficiais e católicas da Camacha, entoaram cânticos de saudação. Mastros com bandeiras, flores e um dístico «Parabéns»—guarneciam alguns pontos mais centrais da freguesia. Na Casa do Povo realizou-se uma sessão solene de boas vindas, aguardando os recém chegados as pessoas mais gradas da freguesia”. Depois dos discursos dirigiram-se para a Capela de S. José, onde decorreu uma cerimónia de bênção ao Santíssimo em Acção de Graças, pelo regresso e pelo sucesso alcançado. O dia terminou com um «finíssimo e abundante copo de água» nas instalações da Casa do Povo, preparado pelas senhoras e meninas da localidade. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Cinquenta e seis , são os anos que espaçam a inauguração da Torre do Relógio (vide neste blogue Acto benemérito) e a criação do estabelecimento comercial, em volta da mesma, conhecido como Café Relógio. Mandada construir por Michael Grabham, nos limites da sua quinta na Camacha, a fim de proporcionar à população um relógio público que regulasse o passar dos seus dias, ficou um pouco ignorada quando o, já idoso, doutor a vendeu a Frederico Rodrigues, entre a segunda e terceira décadas do século XX[i]. Frederico Rodrigues, um empresário que, aqui neste blogue, já por diversas vezes tem sido referido, graças aos múltiplos empreendimentos a que se dedicou e que em muito contribuíram para o desenvolvimento da localidade[ii], durante cerca de trinta anos centrou a sua atenção noutros imoveis de sua propriedade, deixando a Torre, ali isolada, no extremo norte da quinta, onde explorava o Hotel da Camacha. Até que no mês de Maio de 1951 apresentou na Câmara Municipal de Santa Cruz um “requerimento para restaurar e construir um pavilhão no prédio onde se encontra instalado o relógio, no sítio da Igreja, freguesia da Camacha”[iii]. Deferido o pedido, terá sido iniciado o processo e em Agosto de 1952 deu entrada nos serviços da Câmara um pedido de vistoria de um estabelecimento de pastelaria e casa de chá, o qual foi aprovado no mês de Outubro do mesmo ano. Em 1964 a exploração do espaço foi arrendada a uma sociedade, recém formada, entre Cesário de Freitas, barman, natural da Camacha e Guilherme Silva, empregado de mesa, natural do Funchal. Em 1970 Cesário de Freitas vendeu a sua parte a Álvaro Nóbrega, na época chefe de contabilidade do Hotel Reid’s, Fernando Nóbrega, funcionário no Aeroporto de Santa Catarina[iv] e Heliodoro Câmara, empresário de obra de vimes, todos naturais da Camacha, tendo então a sociedade sido restruturada em quatro quotas, em consonância com o aumento de capital. Em 1973 adquiriram o espaço aos descendentes de Frederico Rodrigues, o qual desenvolveram e transformaram naquela que, para além do relevante papel na comunidade, durante cerca de quarenta anos, foi a imagem de marca da Camacha. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Ainda não foi localizado qualquer documento que confirme a data exacta. [ii] Central eléctrica , o Hotel do sr. Frederico , o carro nº740 , o primeiro camião [iii] Actas das sessões da Câmara Municipal de Santa Cruz- ABM [iv] Hoje Aeroporto da Madeira Internacional Cristiano Ronaldo Decorria o ano de 1858 quando Ana de Freitas, de sessenta e seis anos, sentindo-se doente, decidiu vender algumas propriedades que tinha em comum com o seu, ausente, marido José Vieira. Ana de Freitas nasceu em Gaula e veio morar para a Camacha aos vinte e um anos, quando casou com José Gouveia dos Salgados, em 1813. Em 1836 achando-se viúva, aos quarenta e quatro anos, casou com José Vieira, um mancebo do sítio da Igreja, de olho azul e cabelos loiros, com vinte e sete anos de idade. Viviam-se tempos conturbados no país e com a idade de trinta e três anos, José Vieira, com os seus 152cm de altura, foi mobilizado para assentar praça no Regimento de Infantaria nº 11, tendo seguido para o Reino, a fim de cumprir o serviço militar. Por lá ficou, na qualidade de soldado, até 1859, porém em Dezembro 1860, não tinha ainda regressado à Camacha, o que levou a que a sua mulher, dando-se por viúva, vendesse a terceira das suas propriedades. Aos vinte e sete dias do mês de Agosto de 1867 morreu Ana de Freitas , com a idade de setenta e cinco anos e é de Novembro desse ano que se tem notícia do regresso de João Vieira, num documento notarial no qual ratifica os três negócios feitos, na sua ausência, pela falecida mulher. João Vieira voltou a casar, em Janeiro de 1868, com Joana de Jesus, ele com a idade de cinquenta e nove anos, ela com cinquenta, e sete e daqui se lhe perde o rasto, podendo se presumir que o casal terá saído da Camacha. Esta é apenas uma breve história de um dos quarenta e cinco[i] jovens camacheiros que ao longo do século XIX e início do século XX foram chamados a servir o Reino, integrados em diversas unidades de Infantaria. Os primeiros foram integrados no Regimento de Infantaria nº 11 em 1837 e daí até 1907, para além de diferentes números de Regimento de Infantaria, foram integrados na Guarda Municipal de Lisboa, Regimento de Granadeiros da Rainha, Batalhão de Caçadores, Praça de S. Julião da Barra, Companhia de Correcção. O conjunto desta informação revela ainda algumas notas curiosas que nos permite criar uma imagem dos jovens de então. Com um altura média de 1,52m o grupo teve nos seus extremos Joaquim de Ornelas, um jovem recruta de dezanove anos com 1,42m, em 1839 e Francisco Ferreira, 18 anos, 1,72m, em 1855. Maioritariamente tinham olhos “pardos”[ii] e cabelos castanhos, ao que se juntavam um ou dois olhos azuis, esverdeados ou pretos e cabelos loiros e pretos. Todos eles foram apenas soldados, apesar de diversos terem prosseguido carreira militar durante alguns anos. Enquanto profissão foram na sua maioria lavradores, constando da lista também um sapateiro, dois criados de servir e um barbeiro. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Histórico Militar [ii] Descrição física patente nos Livros Mestres - Arquivo Histórico Militar ABM – Notariais, Paroquiais imagem em - https://purl.pt/11767/3/e-805-a_JPG/e-805-a_JPG_24-C-R0150/e-805-a_0001_1_p24-C-R0150.jpg A primeira imagem que se associa, quando se fala da Casa do Povo da Camacha, é de esta ser um organismo vocacionado para a cultura. E efectivamente é a qualidade e notoriedade dos diversos grupos que a integram que em muito contribuem para a sua notabilidade. No entanto um olhar mais atendo revela-nos outras áreas de intervenção. Criada em 25 de Maio de 1937, ao longo da sua história assumiu por diversas vezes um papel mais interventivo na administração local e no desenvolvimento da freguesia e da sua população. Foi o que sucedeu no início da década de quarenta, quando esta instituição chamou a si a responsabilidade de reparar, melhorar ou mesmo construir de novo, a rede de caminhos que ligavam os diversos pontos da freguesia. Recorrendo aos seus próprios fundos e contando com o apoio financeiro da Comissão de Socorros Distrital e da Câmara Municipal de Santa Cruz, no mês de Junho de 1940 deu início às obras de melhoramento de velhos caminhos, alargando-os e calcetando. O primeiro a beneficiar desses trabalhos foi o Caminho da Eira Salgada, que no início de Agosto contava já com uma extensão de 400m. Seguiram-se os caminhos da Ribeirinha, Rochão, Achadinha, Casais de Além e Nogueira. Deste pacote de obras fizeram parte, também, arranjos no campo da Achada e calcetamento dos caminhos em seu redor, trabalhos estes comparticipados pelos comerciantes locais e alguns particulares. Para a execução destas obras a Casa do Povo recorreu a vinte e cinco associados que estavam desempregados e que, segundo um artigo inserido no Diário da Madeira, foram renumerados “ pelo bom sistema de assistência, vales de milho para serem distribuídos em troca de trabalho”. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) ABM- Colecção de Jornais, Diário da Madeira
Era assim que a chamávamos, “sininhos azuis”, desconhecendo por completo se, porventura, teria outro nome. Mas, deste modo, assim nos entendíamos. A caminho de casa, vindas da escola dos Salgados, e para evitar a passagem por dentro da quinta Câmara, o caminho mais usual obrigava a subida da vereda até o caminho do hotel e por ali abaixo direitinhas à zona mais a oeste da Ribeirinha. O pequeno grupo de meninas com 7, 8, 9 ou 10 anos, caminhava de regresso a casa depois da manhã passada na escola. Nuns dias em alvoroço, noutros em silêncio; nuns dias em passo apressado na ânsia de chegar a casa, noutros a passo mais lento devido ao calor e cansaço… mas sempre parávamos ao pé de “sininhos azuis”. Não sei de quem teria sido a ideia, mas era crença generalizada entre o grupo que se espetássemos um raminho na terra do talude que ladeava o caminho e desejássemos qualquer coisa, o desejo seria realizado se o raminho pegasse. Todos os dias havia desejos. Não sei os das outras…mas os meus eram muito simples, anseios de quem tinha sete anos e andava na 2ª classe: conseguir fazer o próximo ditado sem nenhum erro; acertar nas contas todas; não ser obrigada a comer o lanche; conseguir saltar à corda a cruzar e descruzar os braços pelo menos cem vezes seguidas. Era um facto que os desejos iam acontecendo. Mas também era um facto que as estacas espetadas no solo murchavam, secavam e … nenhuma delas pegava. Todo o talude estava repleto de raminhos castanhos, com folhas mirradas e enroladas. Raminhos secos dos quais já ninguém se lembrava quais eram os seus. Sem nome comum em português, e muito menos na Madeira, vim a saber muito mais tarde que o nome que lhe dávamos corresponde, a grosso modo, ao nome vulgar usado na Austrália, a sua terra nativa: bluebell creeper (trepadeira de campainhas[1] azuis). Esta “bluebell creeper” (denominada cientificamente de Billardiera heterophylla [2]) é uma planta nativa do sudoeste da Austrália e muito comum nos eucaliptais abertos. Sendo uma espécie interessante do ponto de vista ornamental e de ampla tolerância ecológica, foi levada para outras regiões da Austrália para ser usada em jardinagem. Daí se escapou, naturalizou-se e é hoje considerada uma prioridade no controlo de plantas invasoras nos ecossistemas nativos dos estados mais orientais do continente australiano. Na europa, só é encontrada espontaneamente em Portugal, onde foi assinalada pela primeira vez como naturalizada em 1987, na serra de Sintra, pelo botânico português A. Pinto da Silva. Embora só muito recentemente esta planta tenha sido publicada como naturalizada na Madeira (2014), a sua presença já havia sido reportada como planta ornamental, no início do século XX, pelo Dr. Michael Grabham, o proprietário inglês da Quinta Grabham, na Camacha. No seu livro sobre as plantas encontradas nos jardins da Madeira, publicado em 1926, descreve a planta[3], na altura sob a designação científica de Sollya salicifolia, fazendo referência à sua ocorrência bastante comum na Camacha. Embora referisse a utilização entusiástica pelos jardineiros locais, a planta só é encontrada nas proximidades da casa onde a família Grabham viveu até por volta de 1910 e que mais tarde foi convertida em hotel-pensão (ver entrada O hotel do sr. Frederico). Trata-se de um arbusto pequeno que emite alguns ramos escandentes que se enrolam à volta de outras plantas e a permitem trepar. Com folhas verdes brilhantes, floresce a partir de maio, em inflorescências terminais com 5 a 8 flores, de cor azul intenso e que se tornam mais claras à medida que envelhecem. Sendo uma espécie capaz de se adaptar a diferentes condições ambientais, com elevada fecundidade e capacidade de regenerar após incêndio permitiu que, sem cuidados de cultivo, a planta tenha permanecido no jardim há muito abandonado e escapado para as áreas envolventes. Apesar de pouco dispersa, encontram-se algumas populações subespontâneas em áreas envolventes relativamente distantes do jardim onde terá sido introduzida. A espécie mostra, deste modo, um comportamento invasor que poderá representar uma ameaça para a flora nativa da Madeira. Ainda que a espécie se encontre atualmente restrita a uma área sem grande interesse de conservação, poderá servir de plataforma para áreas de vegetação nativa à semelhança do que aconteceu no passado com o incenseiro ou árvore-do-incenso (Pittosporum undulatum), uma espécie da mesma família. Esta árvore ornamental teria sido introduzida nos jardins das quintas da costa sul no último quartel do século XIX e é hoje uma das grandes ameaças para a floresta Laurissilva que ocorre na face norte da ilha da Madeira. Daí que a “sininhos azuis” poderá ser um motivo de preocupação e neste caso uma prioridade para intervenção precoce no controlo de potenciais espécies invasoras. E, apesar da frustração com que por vezes olhávamos os raminhos secos num vislumbre de um desejo evanescente, ainda bem que as nossas estacas não pegaram. Caso contrário, teríamos levado à disseminação desta espécie, ainda para mais longe do jardim onde foi introduzida e cultivada no princípio do século XX, acelerando a sua dispersão. Um agradecimento especial ao Professor Doutor Miguel Menezes de Sequeira, com quem foi levada a cabo a investigação sobre esta planta como planta naturalizada na Madeira e pela cedência da fotografia de detalhe das flores. Aida Nóbrega Pupo @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Bibliografia BACELAR, J. J. D., CORREIA, A. I. D., ESCUDEIRO, A. S. C., PINTO-DA-SILVA, A. R., & RODRIGUES, C. 1987. Novidades da Flora Sintrana. Boletim da Sociedade Broteriana 2(60):147-162. BACHMANN, M., & JOHNSON, R. 2010. Distribution, Outbreak Observations and Implications for Management of Bluebell Creeper 'Billardiera heterophylla' (Lindl.) L.Cayzer and Crisp, in the Green Triangle Region of South-Eastern Australia. The Victorian Naturalist 127(4):137-145. CAYZER, L. W., CRISP, M. D., & TELFORD, I. R. H. 2004. Cladistic analysis and revision of Billardiera (Pittosporaceae). Australian Systematic Botany 17:83-125. MABBERLY, D. J. 2008. Mabberley's Plant-book. (third ed.), University of Washington Botanic Gardens, Seatle, 1040 pp. PUPO-CORREIA, A. & MENEZES DE SEQUEIRA, M. 2014 First record of Billardiera heterophylla (Lindl.) L. Cayzer & Crisp (Pittosporaceae) as naturalised plant in Madeira Island (Portugal). Silva Lusitana, nº Especial, 27-34. VIEIRA, R. 2002. Flora da Madeira. Plantas Vasculares Naturalizadas do Arquipélago da Madeira. Boletim do Museu Municipal do Funchal (História Natural), Sup. 8:5-281. [1] Embora bell em inglês também signifique sino, em português às flores com esta forma é atribuída geralmente a designação de campainha. [2] Billardiera heterophylla (Lindl.) L. Cayzer & Crisp (Pittosporacea) [3] “A dainty little climber, bearing deep blue flowers, occurs sparingly in Funchal, but fairly common at Camacha” (uma trepadeira pequena e delicada, com flores de um azul intenso, que ocorre de modo esparso no Funchal mas é bastante comum na Camacha). |
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Dezembro 2023
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