História, histórias e curiosidades
A construção civil de infra-estruturas públicas é uma actividade essencial para o desenvolvimento económico de qualquer região e todos temos a noção que essas obras, de que beneficiamos, infelizmente, são acompanhadas por acidentes de trabalho, muitas vezes fatais. Da história da Camacha também fazem parte essas ocorrências que aumentam o custo humano e enodoam o benefício advindo das obras públicas na localidade. Até ao final do século vinte a obra pública de maior impacto no desenvolvimento da Camacha foi a estrada de ligação entre a Camacha e o Funchal, iniciada a meados da década de vinte e inaugurada 1936 ( vide A-inauguracao). A imprensa da altura deixou-nos diversos testemunhos de alguns reveses a ela associada. No dia sete de Maio de 1926, José de Vasconcelos e Manuel Ferreira, ambos do Ribeiro Serrão, enquanto partiam pedra para a nova estrada na zona do Vale Paraíso, ficaram ambos feridos com alguma gravidade, devido à «broca» ter explodido no momento em que a introduziam na pedra. José de Vasconcelos ficou com uma mão esfacelada e o olho esquerdo ferido e Manuel Ferreira com diversas feridas nos braços. Foram levados para o Hospital Civil onde ficaram internados. De maior gravidade foi o acidente que vitimou José de Nóbrega Lacharte, morador no Vale Paraíso, em treze de Setembro do mesmo ano. Na sequência de um desmoronamento de um barranco, aquando procurava pedra para a estrada, conjuntamente com outros indivíduos, ficou soterrado ao fugir por ter tropeçado num carro de mão. Foi levado em rede para o Hospital Civil no Funchal onde lhe foi amputado o pé direito. Pai de cinco filhos deve, eventualmente, ter recebido algum amparo financeiro uma vez que se encontrava segurado pela companhia «A Mutualidade». Passado mais de um ano, em dezasseis de Novembro de 1927 ocorreu outro grave incidente, desta feita fatal para o trabalhador. João de Agrela, de quarenta e cinco anos, morador no Palheiro Ferreiro, na parte de S. Gonçalo, foi atingido por um carvalho que caiu quando cavava em seu redor, para preparar o derrube da árvore que ficava no trajecto da nova estrada. Foi socorrido pelos colegas que o transportaram, em rede, para o hospital, não sem antes passar, a seu pedido, por sua casa onde pôde se despedir de sua mulher e filhos. Chegou já cadáver ao hospital tendo sido imediatamente transferido para o necrotério do cemitério das Angústias. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) ABM- Colecção de Jornais
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Vinte e cinco anos separam as datas da chegada do primeiro automóvel à Madeira e a data de registo do primeiro automóvel camacheiro. Apesar da proximidade geográfica ao Funchal e de certa abertura das mentes, graças ao contacto com os estrangeiros que desde a segunda década do século dezanove tinham adoptado a Camacha como sua estância favorita e pelos inícios do século vinte ainda aqui se hospedavam por largos períodos, esta revolução dos meios de transporte tardou a chegar à freguesia, sobretudo devido à falta de estradas adequadas (vide Viacao acelerada e A-inauguracao )
A primeira viatura camacheira chegou pelas mãos de Frederico Rodrigues, um proprietário empreendedor que contribuiu significativamente para o desenvolvimento da localidade (vide Central-electrica-da-camacha e O-hotel-do-sr-frederico). Frederico Rodrigues nasceu na Achadinha, Camacha em dois de Outubro de 1877, filho de José Rodrigues, oficial de obra de vimes e de Alvina Júlia Escórcio e foi baptizado na igreja local tendo por padrinhos João de Andrade, oficial de obra de vimes e Mary Evelin Reynold, criada de servir em casas estrangeiras. Na mesma igreja casou com Amélia Augusta de Miranda, também natural da Camacha, em 1899. Assim como outros proprietários camacheiros Frederico Rodrigues residia no Funchal, onde geria os seus negócios. Em quinze de Maio de 1928 registou na Direcção dos Serviços Industriais, Eléctricos e de Viação da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, um automóvel ligeiro da marca De Lion Bouton[i], referindo apenas a morada funchalense. O registo com morada na Camacha surge só em 1929 através da licença atribuída pela Câmara Municipal de Santa Cruz conjuntamente com a licença à Empresa Camachense de Automóveis e, atendendo a que não há registo outra viatura, pode se presumir que seria o mesmo automóvel nº 740. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Marca de carros francesa que existiu entre 1883 e 1953 ABM - Direcção dos Serviços Industriais, Eléctricos e de Viação da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal Os primeiros jornais surgiram na Madeira, na década de vinte do século dezanove e, felizmente, ao longo da sua existência foram deixando registados pequenos apontamentos que se tornam valiosos na construção da nossa história. José Marciano da Silveira, proprietário do jornal a Voz do Povo, nascido na Camacha; Luís de Ornelas Pinto Coelho, redactor do Diário de Notícias, aquando passava férias na Camacha; Manuel de Jesus d’ Antas de Almeida, professor de ensino primário, deixaram-nos, se bem que com alguma subjectividade, preciosos testemunhos da Camacha da segunda metade do século dezanove. A entrar no século vinte, vão surgindo esporadicamente outros relatos nos diferentes jornais e embora assinados apenas por «correspondente», constituem também fontes de informação relevante. É o caso do texto apresentado abaixo, junção de dois artigos “O Diário da Madeira na Camacha” durante o mês de Abril de 1920 que relatam, de forma mordaz, diferentes aspectos de uma Camacha a viver na ressaca da primeira grande guerra: “Tempo esplendido! O sol continua a aquecer os campos! Os prados e os vales produziram mimosas e aromáticas flores! Bandos de passarinhos entoam trinados de alegria! a monotonia que invadia o solo transformou-se em primores, em alegria, como que a convidar os admiradores da bela paisagem, a uma agradável digressão por estes pitorescos lados, a gosarem as delícias que a natureza nos oferece. Pena é, que aos touristes não se lhes depare aquela frondosa arborização que, outrora, nos suavisava com a sua abençoada sombra, preservando-nos do calor torrificante e que, presentemente, surge triste e despida dos atrativos que lhe eram tão peculiares, devido à tarefa destruidora a que o implacável machado se tem dedicado derrubando tudo sem dó nem piedade, daqueles que, tendo só em mira a ganancia, não plantam novas arvores para substituição das derrubadas, nem fazem a mais pequena ideia da influencia que a arvore exerce na suavização dos climas, na distribuição das águas, na produção das riquezas naturais, na higiene das populações, na estética da paisagem e na educação do sentimento…” “A estrada e caminhos desta freguesia são intransitáveis e apenas no inverno «navegáveis», devido ao abandono a que tem sido lançada esta pitoresca freguesia, uma filha engeitada do concelho de Santa Cruz… e nós, pobres camachenses vamos caminhando aos encontrões ou servindo-nos de «tanks» para nos dirigirmos as nossas casas…” “A falta de géneros de primeira necessidade continua a sentir-se e duma forma assustadora nas mercearias desta localidade, valendo-se os seus habitantes, para não morrerem de fome, do intragável milho que, como é do domínio publico, foi até julgado improprio para alimentação dos animais. Açucar, isto é coisa que por cá não aparece desde há muito tempo apesar de já ter sido distribuído o que foi desembarcado ultimamente, vindo de Africa… Para completar este triste quadro de fome, consta que também não é permitido o fornecimento de massa…” “Nesta localidade, actualmente, duas padarias que, segundo o parecer de muita gente melhor seria que não existissem, pelos seguintes motivos: Numa, se o pão é regularmente manipulado, falta-lhe o pêso regulamentar; noutra, se tem o pêso, é pessimamente manipulado com a sua partesinha de milho, de sóda… Agora só faltava a crise do tabaco! Querendo-se fumar um cigarro não se encontra à venda, não porque ele não seja fornecido pelo respectivo deposito, pois, vem até aos sacos, mas sim devido à ganancia cada vez mais devoradora dos nossos mercieiros…” “O ubérrimo torrão, a mãe querida que nos dá o sustento, jaz abandonado sem um braço amigo e protector que o amanhe regando com o seu suor o sulco profundo que é o único recurso a que podemos lançar mão para atenuar a fome… Mas não; largam-se as enxadas a enferrujar nos «pugulhais» como instrumentos indignos… e amarrando-se todos os poucos homens validos que nos restaram, ao mister da obra de vêrga, que é paga por preço excessivo devido à gananciosa exportação de vimes, e os que são ambiciosos, emigram em bandos para a America e Brasil, em busca de uma fortuna, suficiente para descansadamente admirarem o aspecto tragico e de desolação que, daqui a poucos ânos se lhes deparará a terra que lhes foi berço…” Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais
Não terão sido os primeiros camacheiros a procurar outra vida fora da Madeira, todavia são aqueles que os registos de passaporte guardam memória. Entre 1870 e 1879 foram oito a requerer passaporte: um para Canárias, dois para Demerara, quatro para o Havai e um para Inglaterra. Na década seguinte, entre 1880 e 1889, o número de requerimentos aumentou para quarenta e quatro, sendo a maior fatia com destino ao Havai, vinte e seis. Os restantes distribuíram-se por Argentina, um; Brasil, três; Canárias, cinco; Demerara, cinco; Europa, um; Estados Unidos, um e dois cujo documento não indica o destino. A fechar o século foram quarenta e uma solicitações. O Brasil foi o destino mais procurado, dezasseis. Os restantes distribuíram-se por Africa do Sul, sete; Argentina, um; Antígua, um; Canárias, quatro; Demerara, dois; Europa, um; Havai, um; S. Cristóvão e Nevis, um; Trindade e Tobago, um; Estados Unidos, seis e ainda dois cujos passaportes que não identificam destino. De salientar que estes números não reflectem a totalidade de pessoas que na época daqui saíram à procura de uma vida melhor. O requerente do passaporte podia levar outras pessoas em sua companhia e no grupo dos camacheiros havaianos, por exemplo, aos trinta e um requerentes juntaram-se, na maioria dos casos, cônjuge e filhos, somando mais do triplo, num total de noventa e quatro pessoas. O Havai não terá sido caso único, contudo foi o mais expressivo, atendendo essencialmente a dois factores: a abertura das entidades oficiais havaianas, que encorajavam essa prática, e a viagem de cerca de trinta mil quilómetros que descia o Atlântico, dobrava o temível cabo Horn e subia o Pacifico até chegar ao seu destino. Eram à volta de quatro meses, em condições de navegação, acomodação, saúde e salubridade muito difíceis que desencorajariam meras viagens exploratórias, empenhando desde logo toda a família no processo de mudança de vida. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) ABM - Governo Civil do Funchal - Registos de Passaportes
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Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
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