História, histórias e curiosidades
O quando e o porquê do estabelecimento dos limites geográficos das localidades nem sempre é fácil de apurar. Tão pouco o é o como se determinou a propriedade dos terrenos que as compõem. A noroeste e a norte, a Camacha termina nas serras, que são suas sem nunca o terem propriamente sido. O Montado do Pereiro é exemplo disso. A primeira vez que se tem notícia de um local chamado Pereiro, nas serras da Camacha, data de Julho de 1686, quando o cónego teologal João de Saldanha fez um requerimento ao Bispo para poder celebrar missa na pequena ermida que tinha construído, em propriedade sua no local (vide Ermida de Nossa Senhora da Piedade... ). Em 1741, um requerimento da Companhia de Jesus sobre um foro que deveria pagar, informa-nos de que esse terreno estava nas mãos da Igreja. Esta designação perde-se depois de vista, só voltando a surgir no século vinte como Montado do Pereiro, sem contudo podermos afirmar, com toda a certeza, de que se trata do mesmo espaço. Sabe-se que os foros da igreja foram sendo vendidos ao longo dos tempos e desde meados do século dezanove diversos proprietários reclamaram como seus alguns terrenos nas serras da Camacha. Uma pretensão a que a Câmara de Santa Cruz sempre se opôs, tendo conseguido manter, até com o aval dos tribunais, o estatuto de logradouro comum. Apesar desse estatuto os baldios da serra acabaram sob tutela dos Serviços Florestais, um organismo criado no final do século dezanove para responder à necessidade de rearborização das serras, delapidadas pelos excessos de lenhadores, carvoeiros e pastorícia no decorrer dos séculos e anos anteriores. Em Janeiro de 1913 a Junta Agrícola pediu à Câmara a cedência dos baldios entre o Poiso, Figueirinha, Meia Serra e Fonte de João do Prado, a fim de proceder à sua rearborização. Na sequência deste pedido foi delimitada uma “área com quinhentos mil metros quadrados a que foi dado o nome de Montado do Pereiro a qual desde então se encontra vedada”[i]. Durante alguns anos a Junta Geral não só cedeu a erva que ali nascia para alimento de gado, gratuitamente aos lavradores pobres da Camacha, como também autorizou os pastores a utilizarem o espaço, desde que cumprissem as regras estipuladas para preservação das árvores em crescimento. Pelos anos quarenta, a Junta Geral começou a mostrar interesse em se assenhorar do espaço tendo vindo a concretizar essa pretensão em Dezembro de 1955, data em que adquiriu à Câmara de Santa Cruz o Montado do Pereiro pelo valor de 300.000$00 mil escudos. Posteriormente a Câmara canalizou esta verba para a construção do novo edifício dos Paços do Concelho. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Actas da Câmara de Santa Cruz
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Diz o dicionário que uma achada é um planalto pouco extenso, uma palavra que derivou do latim, planata e um topónimo frequente na Macaronésia portuguesa. A designação da Achada na Camacha é provavelmente tão antiga quanto a chegada dos primeiros povoadores, mas dificilmente se poderá apurar quem a encontrou, designou e a declarou como sua. Caldeira, Ferreira, Gouveia, Santos, Baptista, Freitas, Nóbrega, são nomes de família associados à venda de terrenos localizados na Achada da Camacha, por inícios de 1800. Por meados do século já os ingleses tinham adoptado a Camacha e feito da Achada o seu ground de jogos, primeiramente apenas cricket mais tarde também futebol. Para tal arrendavam o terreno, segundo indiciam alguns documentos, de diferentes anos, encontrados nos registos notariais. Daqui surgiu o nome de Jogo da Bola que entre os finais do século dezanove e inícios do século vinte, foi usualmente utilizado para designar aquele espaço. Em 1903, a Câmara de Santa Cruz iniciou um processo, a fim de assumir a propriedade da totalidade do terreno e assim legitimar o logradouro tido como comum (vide A Achada é dos camacheiros). Contudo, só a partir da terceira década começou a evidenciar algum interesse em cuidar e melhorar o espaço. Em 1925 procedeu ao calcetamento da entrada da Achada e porque “sendo indispensável que os trabalhos de aformoseamento do Campo da Achada da Camacha sejam delineadas por pessoa competente e de conhecimento d’obras daquele género”[i] pediu, em Abril de 1926, à Câmara do Funchal a cedência do seu engenheiro, para projectar e coordenar os trabalhos. Desconhece-se o resultado desta intervenção e nem se percebe o porquê de em Setembro de 1930 a Câmara proibir a prática de futebol, sob pena de “multa e procedimento criminal por desobediência”, dado a Junta Geral ter incumbido o engenheiro agrónomo Maurílio Ferraz da Silva de coordenar os trabalhos de arborização e relvagem do dito planalto em 1931, o que nos leva a concluir que antes disso nada tinha sido feito. Em Maio de 1939 a Câmara voltou a se debruçar sobre o assunto, pedindo apoio à Delegação de Turismo para transformar a Achada num campo de jogos e parque. Em Junho 1941 encarregou Júlio França de “proceder ao estudo da “parquisação”[ii] e no decorrer de 1943 solicitou igual trabalho aos arquitectos, Francisco Alberto Correia Figueira e David Moreira da Silva, tendo chegado a aprovar um anteprojecto deste último. No entretanto ambicionou uma relva americana, da qual desistiu por ser excessivamente cara, tendo então optado por relva regional. Procedeu ao plantio de árvores e arbustos e fez diversas pequenas intervenções que pouco ou nada alteraram o espaço. A partir de 47 procedeu ao calcetamento de passeios e caminhos o que se prolongou à década seguinte. Na segunda sessão de Janeiro de 1948 deliberou erguer “um monumento histórico desportivo para perpetuar o reconhecimento deste concelho ao percursor do futebol em Portugal Excelentíssimo senhor Harry Hinton”[iii], criando para isso uma comissão que desse andamento ao projecto. Em Fevereiro voltou a decidir proceder à “parquisação“ e em Março proibiu a realização de jogos de futebol naquele espaço. No ano seguinte, no mês de Agosto foi decidido por unanimidade alterar o nome, passando a designar-se de Parque do Doutor João Abel de Freitas. A electricidade chegou à Camacha e no mês de Agosto de 1955 a Câmara adquiriu 15 lâmpadas que passaram a iluminar as noites da Achada. Mais decisiva para, finalmente, desbloquear a velha aspiração de transformar o descampado da Achada num parque ajardinado, foi a dádiva feita por um munícipe, não identificado, que 1959 ofereceu água suficiente para garantir a sua manutenção. Foi então contratado o arquitecto Luís da Conceição Teixeira que elaborou um projecto do qual constavam basicamente os elementos que caracterizaram este espaço nos últimos cinquenta anos, até a recente betonização. O processo teve início em 1960 e prolongou-se até ao final da década, tendo sofrido diversas alterações em relação ao projecto original: a plataforma destinada a exibições não chegou a ter o projectado estrado de madeira nem a vedação metálica; entre outros equipamentos faltaram também as mesas no redondo, o obelisco e o guarda-sol em ferro, à saída do parque infantil. O Ringue de patinagem, o espelho de água, o monumento ao futebol e a estátua mantiveram-se, se bem com algumas alterações. O que se alterou também no final deste processo, em Junho de 1969, foi o nome oficial passando-se a designar Largo Conselheiro Aires de Ornelas, se bem que na voz da população local ainda hoje continue a ser, simplesmente, a Achada. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira- Actas das sessões da Câmara Municipal 1926-1930
[ii] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira- Actas das sessões da Câmara Municipal 1939-1940 [iii] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira- Actas das sessões da Câmara Municipal 1944-1948 [iv] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira · Câmara Municipal de Santa Cruz - Actas das sessões da Câmara Municipal · Direcção de Obras Públicas · Notariais Apesar da sua natureza rural, nas descrições que se vão encontrando ao longos dos trezentos e quarenta e cinco anos de existência da Camacha, a agricultura não é referenciada como actividade mais impactante no ganha-pão das gentes camacheiras. Em 1762 o padre José Telo de Menezes, num pedido que fez ao rei, descreveu os seus fregueses como pastores pobres em serra desabrida[i]. No início do século dezanove, o Bispo de Meliapor[ii] indica a venda de lenha, como principal actividade da população camachense. No final de novecentos, um relatório das relações comerciais dos Estados Unidos com outros países, nos anos de 1882 e 1883, referia a Camacha como a grande fornecedora de obras de vimes da Madeira “The manufacture of many articles in wicker work has increased enorinonsly within the last ten years Sofas tables chairs and baskets of all shapes are made and shipped by thousands every year The largest quantities are made at Camacha and afford a lucrative occupation to many men boys and girls “ (O fabrico de muitos artigos em vime tem aumentado substancialmente nos últimos dez anos. Sofás, mesas, cadeiras e cestos de todas as formas são feitos e enviados aos milhares todos os anos As maiores quantidades são feitas na Camacha e proporcionam uma ocupação lucrativa a muitos homens, rapazes e raparigas.)[iii] Não obstante esta relevância de outras actividades, a agricultura também teve, naturalmente, a sua importância, quer na mera subsistência quer no desenvolvimento económico da localidade. Os mapas referentes à produção agrícola regional nos anos de 1834, 35, 36 e 37, para efeitos de pagamento de dízimos, publicados no Jornal a Flôr de Oceano[iv],constituem uma informação interessante, para o conhecimento da dimensão desta actividade na Camacha de então: 1834- 6 barris, 1 dezima,6 quartilhos de Vinho; 651 alqueires, 4 maquias de Trigo; 1556 alqueires, 4 maquias de Cevada; 745 alqueires de Centeio. 1835- 3 barris de Vinho; 763 alqueires, 2 maquias de Trigo; 1497 alqueires, 8 maquias de Cevada; 1131 alqueires, 4 maquias de Centeio. 1836- 17 barris, 4 dezima, 4 quartilhos de Vinho; 495 alqueires de Trigo; 1215 alqueires de Cevada; 737 alqueires, 8 maquias de Centeio. - 1837- 202 alqueires, 8 maquias de Trigo; 457 alqueires, 8 maquias de Cevada; 306 alqueires, 4 maquias de Centeio. Estes números quando comparados com o todo da ilha da Madeira, permitem visualizar um quadro maior, no qual a Camacha no que diz respeito à produção de vinho e trigo, estava entre as localidades de menor produção, enquanto a cevada e o centeio colocavam-na entre os dez maiores produtores regionais. Nesta altura os produtores tinham ainda mais um encargo, o denominado Subsídio Literário, um imposto sobre o vinho, aguardente e carnes verdes destinado a custear o ensino (do qual a Camacha nada beneficiava). Por meados do século José Marciano da Silveira refere na sua Voz do Povo em 1861 que antigamente se cultivava semilha mas que por aquela altura para além dos cereais atrás referidos cultivava-se o milho, batata-doce, inhame, frutas e verduras que sustentavam o Funchal. No terminar do século Luiz d'O. P. Coelho, um colaborador do Diário de Notícias que escreveu diversas crónicas sobre a Camacha enquanto gozava férias nesta localidade, descrevia em Julho de 1892 : “Acresce que desde que aqui cheguei (23 do corrente) ainda não cessou de cair um orvalho, mais ou menos intenso, que não tem permitido os trabalhos da seiva e da eira, com desgosto e prejuízo dos agricultores cerealíferos, que estão ansiosos pela elevação da temperatura e bom tempo favorável à debulha do trigo e colheita do feno, importante produção desta localidade. Tive hoje ensejo de presencear um trabalho para mim curioso por completamente desconhecido– a impressão de feno preparado para embarque. Facultou-me este ensejo um dos proprietários d’esta localidade, muito estimado pelas suas qualidades pessoaes e trato affavel, o senhor Manoel Filippe, antigo regedor desta parochia, e dono do engenho de imprensar feno. É de madeira e modelado pelo referido proprietário, o singello apparelho que se emprega n’ esta industria que occupa numerosos individuos de ambos os sexos.” Por inícios de 1900, a par com a obra de vimes em crescimento, encontram-se referências ao cultivo, para comercialização, de trigo e centeio aos quais se juntam as maçãs para exportação. No decorrer do século vinte os núcleos de maior implantação agrícola mantiveram-se mais ou menos estáveis até a sétima década, tendo entrado então num sentido decrescente que se acentuou de forma significativa no último quarteirão. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho da Fazenda, liv. 321
[ii] ALMEIDA, Eduardo de Castro e, Archivo de Marinha e Ultramar, inventário: Madeira e Porto Santo, Coimbra 1909. Vol.II, doc.12465, p.333 [iii] Commercial Relations of the United States with Foreign Countries - United States. Bureau of Foreign and Domestic Commerce - Google Livros [iv] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, Flôr do Oceano, Diário de Notícias Apesar de não alcançar a dimensão nem o prestígio de iguais tradições religiosas em outras localidades, a Camacha, quiçá desde sempre, também viveu com empenho o desenrolar das suas cerimónias religiosas pascais. É disso testemunho a pequena notícia inserida no Diário de Notícias[i] de oito de Abril de 1903 que constitui a referência mais antiga à Páscoa camacheira, até o momento localizada: “Na Camacha As cerimónias da Semana Santa são feitas alli com toda a solemnidade. No Enterro do Senhor acompanha a procissão parte da phylarmonica dos Artistas Funchalenses. No sabbado e domingo da Ressurreição toca no adro a mesma phylarmonica.” Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, Diário de Notícias
Charles Jb Williams, o autor destas memórias[i] era o mais jovem dos nove filhos do reverendo David Williams, responsável pelo Collegiate Church of Heytesbury em Wiltshire. Formou-se em medicina em 1824 e posteriormente especializou-se em doenças pulmonares. Começou a trabalhar em 1827 e nesse Verão foi contratado para vir à Madeira acompanhar um paciente de outro médico. O calor de Agosto no Funchal obrigou-os a procurar um ambiente mais saudável tendo vindo se instalar na Camacha, na quinta de James Bean. O paciente infelizmente não sobreviveu tendo falecido na Camacha passado seis semanas. O médico deixou-nos o relato das suas impressões: “... As estradas rurais são muito ásperas e rochosas, mas é admirável a segurança com que os cavalos as percorrem, muitas vezes com os seus condutores agarrados à cauda. Fomos muito gentilmente recebidos na casa de um comerciante da Camacha, a nordeste do Funchal e a uma altitude de cerca de três mil pés acima do mar. A estrada subia e descia uma sucessão de colinas rochosas com algumas árvores grandes, principalmente castanheiros, e nenhuma outra verdura, dado os campos estarem bastante secos devido ao calor, excepto ao longo dos cursos de água, onde a irrigação constante era mantida. Aqui fiquei surpreso ao ver crescer, em altas sebes, gerânios fúcsias e outros arbustos floridos que na Inglaterra requerem a protecção de uma estufa. A casa de campo em que fomos recebidos tinha a vantagem de possuir um desses pequenos ribeiros que nosso anfitrião tinha utilizado, não só para regar um grande jardim, mas também para fazer uma piscina que servia de banho de imersão, um grande refrigério e luxo naquela estação quente. Muitas horas passei neste retiro, relativamente fresco à sombra de um salgueiro chorão e de alguns arbustos perfumados... As minhas caminhadas limitavam-se a uma ou duas horas pela ribeira, subindo ou descendo das montanhas. A água era demasiado escassa para barrar os meus passos Na verdade cada gota de água é desviada para fins de irrigação pelos proprietários que têm o seu abastecimento por rotação. As suas ávidas reivindicações são objectos contínuos de litígios entre eles... De todas as grandes alturas que eu não podia alcançar, a muitas centenas de pés acima da Camacha, havia várias belas vistas completas da vasta extensão do oceano azul abaixo... Talvez as melhores cenas que presenciei foram as noites de luar. A lua e as estrelas brilhavam com um brilho deslumbrante e pareciam dar mais cor e forma à paisagem, do que os vazios amarelados da luz do dia. O especular reflexo cintilante dos castanheiros e loureiros, animando as massas escuras, enquanto o ar quente ressoava com as emoções incessantes de inúmeras cigarras...” MEMOIRS OF CHARLES JB WILLIAMS MD F RS “...The country roads are very rough and rocky but it is wonderful how safely the horses tear along them often with their drivers holding by their tail We were most kindly received into a merchant's house at Camacha to the north east of Funchal at a height of about 3,000 feet above the sea The road was up and down a succession of rocky hills with some large trees chiefly Spanish chestnut and no other verdure for the fields were quite dried by the heat except along the water courses where constant irrigation was kept up Here I was surprised to see growing into high hedges geraniums fuchsias and other flowering shrubs which in England require the protection of a conservatory The country house in which we were received had the advantage of one of these streamlets which our host had utilised not only for watering a large garden but also by making a pool which served as a plunge bath a great refreshment and luxury in that parched season It was overshadowed by a weeping willow and some fragrant shrubs and many an hour did I spend in this comparatively cool retreat... My walks were mostly confined to an hour or two's scramble up or down the mountain torrent The water was too scanty to bar my steps In fact every drop of water is exhausted for the purpose of irrigation by the proprietors who have their supply by rotation and their eager claims are continual subjects of litigation among them From all the great heights that I could reach none many hundred feet above Camacha there were various beautil views of the wide expanse of the blue ocean below... Perhaps the finest scenes which I witnessed were those of moonlight nights The moon and stars shone with dazzling brilliancy and seemed to give more colour and form to the landscape than the tawny blanks of daylight the sparkling specular reflection of the Spanish chestnuts and laurels enlivening the dark masses whilst the warm air resounded with the never ceasing thrills of innumerable cicada” tradução: Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Memoirs of Life and Work - Charles James Blasius Williams - Google Livros
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Abril 2024
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