História, histórias e curiosidades
As primeiras décadas do século vinte foram em todo o país tempos de revolta, esperança e desilusão. A implantação da República trouxe promessas à população que no decorrer dos anos os sucessivos governos não souberam corresponder. A difícil conjuntura imposta pela Primeira Guerra fortaleceu os sentimentos de revolta pelas promessas, não cumpridas, de uma vida melhor. Por todo o país grassavam manifestações, greves, motins, revoltas, a população expressava de forma violenta uma frustração contida e transmitida aos longo de gerações. Apesar de serem movimentos maioritariamente urbanos, a população rural ganhou também ímpeto e saiu a reivindicar as suas aspirações (vide neste blog A revolta dos camacheiros ). Por meados da terceira década na Camacha, mais precisamente no sítio do Vale Paraíso o desencanto ruminava uma raiva crescente entre um grupo de rapazes solteiros, trabalhadores agrícolas que ressentiam a estrutura social em que viviam. O regime de benfeitorias que permitia vender, comprar e até herdar o usufruto das terras que cultivavam, mantinha a efectiva posse da terra nas mãos do proprietário. Os vastos terrenos do Vale Paraíso que no século dezanove pertenciam ao Conde de Carvalhal passaram em 1889 para Luiz da Rocha Machado que os adquiriu em hasta pública. Em 1926 pertenciam à sua viúva Josefina Pimbet Rocha Machado, mas eram administradas pelo feitor Francisco Fernandes da Silva. Foi contra ele que no mês de Março desse ano explodiu, literalmente, o sentimento de injustiça alimentado por uma relação desequilibrada e quase medieval entre senhores e vassalos. Os jornais da altura fizeram notícia do sucedido e é do Diário da Madeira[i] o que abaixo se transcreve: “Cerca da meia hora depois da meia noite do dia 13 do corrente, rebentou com grande estrondo uma bomba de grande calibre, num poio que fica nas trazeiras do prédio da residência do sr. Francisco Fernandes da Silva, zelozo feitor das propriedades da Srª D. Josefina Pimbet da Rocha Machado, no sítio do Vale-Paraiso da Camacha. A explosão fez abrir algumas fendas no referido prédio, assim como danificou as culturas existentes na propriedade, numa extensão não inferior a 30 metros. Em virtude da grande detonação, o sr. Fernandes da Silva e familia que aquela hora estavam dormindo, acordaram sobressaltados, vindo depois participar o ocorrido ao sr. João Macedo de Faria, muito digno comissário da polícia civica do distrito, que por sua vez, encarregou o habil chefe de policia sr. Clemente Avelino Pereira, que imediatamente partiu em automóvel para o local do crime... Uma vez no local aquêle agente da autoridade iniciou pesquisas, trazendo detidos para o Funchal uns trabalhadores dali que submetidos no comissariado de policia a aturados interrogatórios, negaram que tivessem tido participação no crime. Dois dias depois o mesmo agente de autoridade policial voltou a interrogar os detidos, e tão bem se apurou nêsse empenho que um deles acabou por confessar o crime fazendo revelações que levaram o chefe Pereira a mandar deter outros individuos. São os presos: José Januário Gonçalves, José de Freitas, Silvestre Gonçalves, Francisco Paulo Teixeira, Manuel de Sousa, Manuel Teixeira de Freitas, Henrique Correia e José Martins o Vermelho, este ultimo mercieiro e os restantes trabalhadores... todos moradores no Vale-Paraiso, excluindo o Silvestre que reside nos Casais de Além.” A decisão de colocar a bomba fora tomada em conjunto no início de Março. Para o concretizar Januário Gonçalves adquiriu 1kg de clorato, 3 metros de guia, 50 centavos de enxofre, 250g de antimónio e 1Kg de verga que entregou a Silvestre Gonçalves para que este montasse a bomba. No dia 12 à noite encontraram-se todos na casa de Silvestre Gonçalves, onde estiveram a conversar e a tomar aguardente até a hora em que se dirigiram à casa de Francisco Fernandes da Silva, para realizar o atentado. A ideia inicial era lançar a bomba para o quarto do feitor, mas o cão da casa a ladrar impediu-os de se aproximarem, tendo optado por fazer explodir a bomba num poio atrás do imóvel. Directamente envolvidos estiveram Silvestre Gonçalves que segurou a bomba, Januário Gonçalves que pegou fogo à guia e José de Freitas que empunhando um revolver ficou de vigia. Por este motivo ficaram os três detidos, sem admissão de fiança, em Santa Cruz. Os restantes envolvidos foram também indiciados, contudo foi lhes dada a possibilidade de pagar fiança pelo que pagaram vinte mil escudos cada e puderam sair em liberdade. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com)
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Numa terra tão profícua no que diz respeito à preservação da cultura popular, particularmente no que concerne à criação e manutenção de grupos de folclore, é de certa forma frustrante não encontrar documentos que testemunhem aquilo que a tradição oral soube preservar. O poema de José Marciano da Silveira, publicado na Voz do Povo em 1860 (vide Poema à Camacha ) para além de nos testemunhar as práticas do Imperador e Saloias associados à festa do Espirito Santo, cria-nos também uma imagem do “povo em romarias” que nos remete inevitavelmente para as danças e cantares populares. Já mais para o final do século, vimos encontrar em 1892 no Diário de Notícias, numa crónica de Luiz d’Ornelas Pinto Coelho sobre a Camacha, uma nota relacionada aos grandes arraiais de Agosto que, também sem objectivamente descrever, induz-nos a visualizar grupos a tocar, dançar e a cantar ao desafio: “As festas d'esta natureza são a unica nota alegre, quebrando a monotonia do viver campezino, o pretexto exclusivo das reuniões publicas que approximam, divertindo-os, os indivíduos de ambos os sexos- e portanto não admira que o povo tenha a maior predilecção por taes festividades, mesmo independentemente do sentimento religioso”. Em 1894 o mesmo autor relata no mesmo jornal, numa descrição dos arraiais na Achada da Camacha: “Ver esta planice em dias de arraial, coberta de romeiros, de vehiculos de transporte, de ranchos festivos, dançando e cantando ao som de instrumentos na alacridade característica dos costumes populares, é d’ um effeito surprehendente, d’um pittoresco admiravel”. Se bem que o autor não identifique a origem dos referidos ranchos, pode-se presumir com alguma certeza que alguns destes grupos seriam locais. É já em pleno século vinte, em Maio de 1920 que uma notícia[i] a anunciar a Festa do Espírito Santo na Camacha, alude directamente a um desses, muitos, agrupamentos que ao longo da nossa história se juntaram e ensaiaram para “brincar” em eventos esporádicos. “Consta que este ano será maior a concorrência aquela pitoresca estância, pois aIem dos bazares que costuma ali haver, reina grande entusiasmo entre alguns rapazes e raparigas daquela freguezia nos ensaios dos chamados bailinhos que se efectuarão nesses dias na Achada daquela freguezia “ Em 1948 a constituição do Grupo Folclórico da Casa do Povo veio impor um novo patamar. Distinto dos agrupamentos de familiares e vizinhos que ao longo dos tempos foram assegurando, nas suas existências efémeras, o passar da tradição, este grupo assegurou a sua continuidade ao criar uma estrutura devidamente organizada que lhe permitiu sobreviver ao longo destes seus, já honoráveis, 74 anos. Porque a alma da população camacheira é maior que o seu espaço geográfico, a partir da década de sessenta foram nascendo os outros grupos, devidamente organizados, que alimentam a manutenção das nossas tradições: Grupo Folclórico Infantil da Camacha, Grupo Folclórico Juvenil da Camacha, Grupo de Folclore do Rochão, Grupo Romarias Antigas do Rochão e Grupo Romarias e Tradições. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, Diário de Notícias
Senhora do Bom Caminho Não deixes de caminhar O Mundo fica sozinho Sem a luz do teu olhar Assim entoaram dezenas de crianças das escolas da Camacha, numa fria manhã do final de Janeiro de 1965, presentes na inauguração do nicho de Nossa Senhora dos Bons Caminhos, sito nos Casais d’Além, Camacha. Tudo começara três anos antes aquando da celebração dos 25 anos da Mocidade Portuguesa Feminina, cujo Comissariado Nacional lançou o desafio a todos os Centros, para construírem um nicho devotado a Nossa Senhora, pelas estradas e caminhos de Portugal. Posteriormente esse desafio foi alargado também às escolas e por todo o Portugal foram construídos cerca de quatrocentos nichos[i]. Na Camacha, tomou iniciativa a professora da escola feminina da Igreja, Filomena Gomes que coordenou todo o processo, com a colaboração das restantes professoras e professor das escolas da Camacha. O primeiro passo consistiu na recolha de financiamento, efectuada junto da população que generosamente correspondeu, tornado possível o prosseguimento do projecto. A escolha do local decorreu de três factores: a confluência das duas estradas mais importantes à época, a estrada de ligação ao Funchal e a estrada de ligação ao Caniço; o projecto já em andamento, da escola que iria congregar diversas escolas existentes num só espaço e por último, mas talvez o mais decisivo, a cedência gratuita do terreno para implantação do nicho, feito pelas descendentes de Luiz Rocha Machado. Quanto ao autor da obra, inicialmente a opção tinha recaído sobre um escultor em voga no tipo de trabalho religioso nessa altura, mas cujo nome não ficou registado. Por indisponibilidade do mesmo, Filomena Gomes contactou, via Luiza Clode, colega de magistério primário, também escultora e esposa do recentemente regressado à Madeira, Amândio de Sousa. Esta casualidade acabou por ser um resultado mais feliz para a Camacha que pode se orgulhar de possuir a primeira obra pública deste escultor na Madeira[ii]. O baixo-relevo em cantaria que evoca a fuga de Nossa Senhora para o Egipto, conjuntamente com as formas que o emolduram constituem uma obra despretensiosa, com uma pureza de linhas e valor estético que merecem uma outra nossa (camacheiros) atenção e cuidado em relação ao espaço que a rodeia. Em Maio de 1964 professora Filomena pediu autorização para implantação do nicho no local e iluminação eléctrica sobre o mesmo, a encargo da autarquia, tendo a Câmara acedido aos pedidos. A intenção era inaugurar em 1964, pequenos atrasos levaram a que só no início do ano seguinte se concretizasse. Na foto a equipa de docentes envolvida na concretização do projecto. Em primeiro plano da esquerda para a direita: Agnela Sousa, Emília Câmara, Filomena Gomes. Atrás: a segunda da esquerda para a direita Maria Augusta Correia de Nóbrega, a quinta Maria Lionete Martins de Freitas. Os restantes Angelina, Ida, Emília, Vitorino. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Senhora dos Caminhos (benfeita.net)
[ii] Roteiro do Património Edificado da Camacha Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Actas da Câmara de Santa Cruz Testemunho de Maria Lionete Martins de Freitas Avançaram primeiro os exploradores que talharam trilhos. O usufruto criou as veredas, depois os caminhos, o tempo e a necessidade fizeram as estradas que foram surgindo na medida da precisão das populações.
A Camacha, enquanto serra do Caniço, viu nascer por aí também os seus primeiros caminhos. Em 1845 o regedor do Caniço oficiava à Câmara de Santa Cruz as suas preocupações “manifestando o estado incomunicavel que se acha a freguesia do Caniço com a freguesia da Camacha e suas serras por falta de estrada transitavel, servindo-se o povo por uma perigosa vereda que fica no centro da freguesia”[i]. A Câmara respondeu que já estava quase aberto um caminho. Aquele que mais tarde viria a ser conhecido por estrada da Alagoa, caminho para o Caniço, Caminho Velho para o Caniço, foi fruto de um longo e improdutivo processo dado que em 1878 diversas notícias davam conta de início de obras, para a concretização no dito caminho e desconhece-se a data da sua conclusão. A segunda década do século vinte veio acrescer outras aspirações à população e no que diz respeito a caminhos, o novo ideal era que permitissem a circulação automóvel. Vontade havia mas a espera dos camacheiros foi, mais uma vez, feita de uma longa sucessão de avanços e recuos, até finalmente ver realizada a sua pretensão. (vide neste blogue Viação Acelerada) Em 1931 a Câmara começou a estudar uma estrada nova que ligasse o Caniço à Camacha. Por um ofício que a Comissão Distrital de Socorro aos Desempregados do Funchal enviou à Câmara de Santa Cruz em Julho 1934, pretendendo saber a extensão da estrada a construir e à qual daria uma comparticipação, sabe-se que a mesma ainda não tinha passado de projecto. Contudo não tardou muito, pois a partir do final desse ano e ao longo de 1935 e 1936 são diversas as referências ao andamento dos trabalhos, na estrada que ligaria os Barreiros do Caniço aos Barreiros, Casais d’Além, Camacha. Em Janeiro de 1936 a mesma comissão prorrogou o prazo de acabamento da estrada, instigando a Câmara a finalizá-la até Agosto do mesmo ano. Em Março a Câmara fez afixar “editais proibindo o transito de carros de qualquer natureza na estrada em construção... sem que seja oficialmente aberta ao público”[ii]. Em Abril o presidente da Comissão Administrativa da Câmara, Joaquim Vasconcelos da Câmara, fez constar em acta que os proprietários tinham oferecido os terrenos por onde passava aquela estrada que assim que finalizada seria uma das melhores da Madeira. Conquanto se tenha conhecimento por um ofício da Direcção de Obras Públicas que a Comissão Administrativa da Câmara de Santa Cruz deliberou em trinta de Julho de 1936 dar nome à estrada, a acta dessa sessão nada reflecte, pelo que só podemos presumir que a designação de Estrada Engenheiro Abel Vieira que surge em acta no mês de Dezembro do mesmo ano, tenha efectivamente sido aprovada na referida reunião. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) |
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
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