História, histórias e curiosidades
Na segunda metade do século dezanove a Camacha foi a estância de veraneio favorita dos ingleses, não só dos residentes na região como também de ocasionais turistas, dado que por essas épocas as estadias eram longas. Arrendavam casas, quintas e inclusivamente uma dessas quintas, pelo menos durante um Verão, funcionou como hotel (vide Hotel na Camacha). Lilian F. Ramsey[i], no seu conto sobre as férias passadas na Camacha, já na primeira década do século vinte, faz referência à dificuldade em arranjar acomodações adequadas, dado que as casas disponíveis eram poucas e a “Venda”, hospedaria local não seria adequada para receber jovens mulheres sozinhas, o que de certa forma nos informa da sua qualidade. Enquanto noutras localidades, mais facilmente acessíveis por automóvel, foram sendo estabelecidos hotéis (Monte, Caniço, Santa Cruz, Santo da Serra) a Camacha dos inícios do século vinte tardou em responder e pela terceira década sentia-se abandonada. Foi nessa conjuntura que um grupo de proprietários se mobilizou para melhorar os acessos e que Frederico Rodrigues construiu o seu hotel. A primeira referência ao Hotel da Camacha, encontrada até o momento, surge no Diário da Madeira em seis de Janeiro de 1927, numa pequena notícia em inglês: “This delightful and formerly much favoured summer resort of English Residents is working hard to make itself more accessible to Visitors. The new road, the construction of which is being undertaken by a group of proprietors and other interested persons under the leadership or sr. Frederico, with a subsidy from the Junta Geral will reach the Palheiro district in a week or two and the remainder of the road down to S. Gonçalo, passing above Boa Nova, will, with the help of the Junta Geral be finished by next summer. One of the finest Quintas in the district below the clock, tower is being transformed into a well equipped Hotel, with electric light, tennis court, etc. ...” (Este encantador, e antigamente favorito, resort de Verão dos residentes ingleses está a trabalhar arduamente para se tornar mais acessível aos visitantes. A nova estrada, cuja construção está a cargo de um grupo de proprietários e outros interessados, sob a direcção do sr. Frederico, com um subsídio da Junta Geral chega ao Palheiro dentro de uma ou duas semanas e a restante estrada até S. Gonçalo, passando por cima da Boa Nova, vai, com a ajuda da Junta Geral, estar concluída no próximo Verão. Uma das melhores Quintas do distrito, abaixo da Torre do Relógio está a ser transformada num Hotel bem equipado, com luz eléctrica, campo de ténis, etc.) A estrada, como já anteriormente aqui referido (vide A inauguração) só ficou devidamente concluída em 1936, porém os velhos caminhos foram melhorados por forma a permitir a circulação automóvel, inclusivamente a partir do que ligava a Camacha ao Caniço, foi construída uma ligação a desembocar junto à Quinta transformada em hotel. Os jornais da altura dão-nos conta de que o Hotel da Camacha foi inaugurado em 14 de Agosto de 1927 sem, contudo, informar mais nada sobre esse evento, no entanto encontram-se bastantes anúncios, em português e em inglês, a divulgar o hotel e a promover excursões diárias a partir do Funchal para a Camacha. Num artigo mais alargado inserido no Diário da Madeira ficamos a conhecer um pouco mais: “ … dirigimo-nos ao Hotel ali instalado recentemente pelo senhor Frederico Rodrigues na antiga «Quinta Grabham» hoje pertencente aquele abastado proprietário. O senhor José Rodrigues Vigia, activo comerciante no Funchal e societário do referido Hotel, do qual é digna e atenciosa gerente sua esposa, a sra. Dª Conceição Rodrigues Vigia, teve a gentileza de mostrar-nos todas as dependências do referido estabelecimento que, na verdade, se encontra montado de maneira a deixar as mais gratas impressões em todas as pessoas que o visitem, não só pelas amplas acomodações que dispõe e pelo primoroso serviço que apresenta, como nos foi dado oportunidade de reconhecer ao jantar, mas também pelos recreios e pontos de vista que a vasta Quinta oferece a quem ali deseje passar alguns dias ou mesmo breves horas de agradável conforto espiritual.”[ii] Nestes primeiros anos o Hotel da Camacha arrendou espaços onde funcionaram as escolas, feminina e masculina; nos anos quarenta foi moradia dos refugiados gibraltinos (vide Os Gibraltinos do Hotel) e no final dos anos sessenta já estava desactivado. Hoje só restam as suas ruínas. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Vide o artigo anterior The most enjoyable holiday
[ii] Em 1941 José Rodrigues Vigia construiu e abriu a Casa de Chá pelo que provavelmente por essa altura a sociedade teria sido dissolvida. Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, Diário de Notícias
0 Comments
«… Às seis horas de uma manhã de sábado, partimos da cidade num pequeno carro, puxado por dois bois, sentadas de costas para eles… Por volta das nove horas, entramos na aldeia dispersa e os habitantes correram para as portas das suas casas, para ver quem chegava. Paramos na Venda para fazer nossa primeira compra doméstica - um pão - e em cinco minutos estávamos em nosso chalé. Era um lugarzinho engraçado. Quatro quartos, todos conectados, e um quinto que se projectava de um lado, compunham a nossa residência palaciana. A porta da frente dava para um quarto, de onde uma porta dava para o quarto ao lado, e outra para um terceiro, parte do qual havia sido isolado para formar uma passagem; este levava de um lado para a sala de estar e de outro para a cozinha, onde encontrámos três vizinhas muito bem instaladas, tentando ferver uma chaleira. O chão estava inundado de água, mas o nosso português sendo limitado decidimos adiar explicações… Então nós resolvemos despedir as nossas gentis, mas intrometidas, vizinhas e tomar o pequeno-almoço. Uma rapariga de quatorze anos parecia ter conseguido pôr a chaleira a ferver, e concordamos que seria um plano útil contratá-la… chamei Carolina ao meu quarto, fechei a porta com cuidado e pronunciei de forma persuasiva e significativa a palavra “Creada”. A Carolina olhou para mim espantada, depois o seu rosto relaxou num largo sorriso e disse “Si, Senhora!” Então nós as duas desatamos a rir à gargalhada e a nossa entrevista chegou ao fim… Voltei para a cozinha para encontrar a Outra Rapariga sozinha, examinando a cozinha inundada e a torneira da caldeira pingando. "Eu contratei a Carolina", disse-lhe orgulhosa. Então acomodamo-nos para o pequeno-almoço. Demorou algum tempo aquela primeira refeição. A Outra Rapariga tinha pedido dois ovos a uma das vizinhas metediças e ela voltou só com um. “Eu disse dois ovos,” insistiu a Outra Rapariga. “Sim, sim”, disse a mulher. “A galinha está a pôr mais um, não vai demorar nem um minuto.”… Após os primeiros três dias, todas as tardes saíamos para um longo passeio pelas colinas. Uma vez fora da aldeia, poderíamos percorrer quilómetros sem encontrar mais do que meia dúzia de pessoas ociosas como nós. Passávamos por eiras onde os homens batiam o trigo com clavas de madeira, que subiam e desciam ritmicamente, enquanto as mulheres amarravam a palha, e um ou dois rapazes dedilhavam o machete, um instrumento do tipo viola. Continuavam cantando e tocando a noite toda durante a colheita, às vezes dançando na eira. Depois passávamos por chalés cheios de ramalhetes de ervas colhidas na véspera de São João e amarradas sob os beirais para afastar o mau-olhado. Uma mulher que levava os seus perus, para um passeio, estava claramente desconfortável por nós estarmos a olhar para sua residência. Certa vez, atravessando o arvoredo, vimos o cortejo fúnebre de um bebezinho: estava num pequeno caixão branco, aberto, carregado por seis meninas vestidas de branco e azul, e seguido por vários meninos pequenos. Antes de saírem da sombra das arvores, vimos as crianças se aglomerarem em volta do caixão e levantarem o véu, para mais uma vez olhar o rosto do bebé. Costumava ser um choque voltar desses passeios à tarde, onde nos deparávamos com coisas estranhas e curiosas, para encontrar o jogo, muito inglês, de croquet sendo jogado na Achada, com uma multidão de crianças da aldeia a assistir…» Lilian Fairbrother Ramsey (1877 – 1974) foi uma escritora inglesa que viveu em West Wittering, Inglaterra, e à qual já foram feitas aqui diversas referências graças à sua aparente ligação à Camacha, que se pode constatar nas publicações anteriormente feitas: Amores-perfeitos ; Teach Me Thy Way, O Lord (CAMACHA) ; The Studio, Camacha Tudo indicava uma estadia nesta localidade e os estratos do conto de sua autoria que acima se reproduzem, vêm confirmar esse pressuposto. O conto foi publicado na The Wide World Magazine[i], em 1910, e supõe-se que a autora terá estado na Madeira num dos anos anteriores, dessa primeira década do século vinte. Para fugir do calor do Funchal terá alugado, juntamente com outra rapariga uma pequena casa, pertencente a ingleses, que ficava cerca de quinze metros abaixo da Levada da Serra. Das Carolinas nascidas na última década do século dezanove a que apresenta maior probabilidade de ser a “creada” do conto terá nascido em 1894, filha de José Teixeira de Jesus e de Maria de Jesus, nos Casais d’Além, pelo que se pode conjecturar por este e outros pequenos indícios que a casa ficaria por ali, entre os Casais d’Além e Achadinha. Abaixo, a versão original: «At six o’ clock one Saturday morning we started from town in a small carro, drawn by two bullocks, sitting with our backs to them. About nine o’ clock we entered the straggling village and the inhabitants ran out to their cottage doors to see who was coming. We stopped at the venda to make our first household purchase— a loaf of bread —and in another five minutes we were at our cottage. It was a funny little place. Four rooms, all connected, and a fifth jutting out on one side comprised our palatial abode. The front door opened into a bedroom, from which a door led into the next bedroom, and that again into a third, part of which had been screened off to form a passage; this led on one side into the sitting room, and on another into the kitchen, where we found three neighbors kindly endeavoring to boil a kettle. The floor was flooded with water but our Portuguese being limited we decided to defer explanations… So we resolved to dismiss our kindly but officious neighbors, and get some breakfast. A girl of fourteen seemed to have persuaded the kettle to boil, and we agreed it would be a useful plan to engage her… I summoned Carolina into my bedroom, closed the door carefully, and uttered persuasively and meaningly the word “Creada” ( servant). Carolina gazed at me with stupefaction; then her face relaxed into a broad grin, and she said, comprehendingly, “ Si, Senhora!” Then we both burst out into loud laughter… I returned to the kitchen to find the Other Girl in sole possession, surveying the damp kitchen and the leaking tap of the boiler. “ I have arranged with Carolina,” I her loftily. Then we settled to breakfast. It took some time that first meal. The Other Girl had asked one of asked one of the officious neighbors for two eggs. She returned with one. “ I said two eggs,” insisted the Other Girl. “ Yes, yes,” said the woman. The hen is just laying one; she won’t be a minute… After the first three days we went for a long ramble into the hills every evening. Once outside the village we could go for miles without meeting more than half a dozen people idling like ourselves. We would pass round threshing floors whereon the men would be beating out the corn with wooden flails, which rose and fell rhythmically, while the women bound up the straw, and one or two boys strummed on the machete, an instrument of the guitar type. They would keep up their singing and playing all through the night during the harvest, sometimes dancing on the threshing floor. Then we would pass cottages hung with bunches of herbs gathered on St John's Eve, and tied up under the eaves to keep off the Evil Eye; a woman taking her turkeys for an evening walk was clearly uneasy as we stood staring at her abode. Once, going through the woods, we saw the funeral procession of a tiny baby; it was in a little white open coffin, carried by six wee girls dressed in white and blue, and several small boys followed. Before they left the shadow of the woods we saw the children cluster round the coffin, and raise the veil to take another look at the baby's face. It used to be quite a shock to return from these evening walks, with their strange and curious sights, to find the very English game of croquet being played on the achada, a crowd of village children looking on.» Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] The Wide World Magazine: An Illustrated Monthly of True Narrative, Adventure, Travel, Customs, and Sport, Volume 24- G. Newness, 1910 [i] The Wide World Magazine: An Illustrated Monthly of True Narrative, Adventure, Travel, Customs, and Sport, Volume 24- G. Newness, 1910
Todos tendemos a pensar que o espaço que nos rodeia e conhecemos, desde que guardamos memória, terá sido sempre assim até sofrer as alterações que assistimos ao longo das nossas vidas. A estrada da Carreiras é com certeza um desses casos. Para uns o trajecto obrigatório dos alegres piqueniques na serra, para outros doces recordações de lá ir apanhar as amoras silvestres para a compota e, naturalmente que para os moradores, terá sido sempre o seu caminho para casa. Vislumbrar o seu início, saber exactamente quando e por quem foi construída é um processo dificultado pela falta de documentos mais esclarecedores. A primeira referência remonta ao ano de 1900 num pedido que a Câmara de Santa Cruz apresentou ao rei D. Carlos I, via Governador Civil do Funchal, no qual solicitava apoio financeiro para alargar a vereda do Pico do Infante, que então ligava o caminho do Vale Paraíso ao caminho das Carreiras, numa extensão de cerca de seiscentos metros. Apesar de pouco esclarecedor, o mapa anexo[i] a esse pedido juntamente com diversos mapas dos inícios do século vinte, são suficientes para perceber que este Caminho das Carreiras não tinha um traçado comum com a actual estrada, posto que a ter mantido essa designação hoje seria a perpendicular à mesma que conduz, a partir desta, ao Rochão e à Eira da Cruz. Nova menção a esta estrada só volta a surgir no início dos anos quarenta, quando o Presidente da Câmara de Santa Cruz, o médico Joaquim Vasconcelos de Gouveia propôs ligar a Camacha às serras, através de uma nova estrada. O projecto só avançou em 1943, já sobre a presidência do camacheiro Aires Victor de Jesus que envidou diversos esforços para obter o apoio da Junta Geral, a fim de poder construir esta ligação entre a Estrada Nacional nº 2, de segunda classe (hoje estrada regional 102), e o sítio das Carreiras de Cima. A dezanove de Agosto de 1945 com grande pompa e direito a salvas de morteiros, na presença das mais altas entidades à época, imprensa, convidados e população local, o Governador Civil, Eng. Vieira Barbosa, cortou a fita verde e encarnada que atravessava a nova estrada apensa a um arco de flores e verduras, encimado por duas bandeiras nacionais. Feitos os discursos e estreada a estrada com um curto passeio a pé, a comitiva instalou-se em diversas viaturas e percorreu os dois quilómetros engalanados com arcos de flores, ao som do estalar dos foguetes. A nova estrada das Carreiras terminava no local do antigo caminho com o mesmo nome e daí a comitiva seguiu em frente até a Figueirinha, cujo estrada tinha sido alargada a expensas da Junta Geral. Pelos anos cinquenta a estrada foi calcetada e só mais tarde foram construídos os quatro quilómetros que lhe deram a continuidade que hoje a ligam à estrada regional 103 e daí ao Poiso. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Imagem tratada digitalmente. A imagem original data de 1992 e pode ser visto em Representação digital - Automóvel Austin Bantan (1933) do piloto João Cristóvão, na prova de arranque e travagem do 5.º Raid Diário de Notícias, na Estrada Florestal das Carreiras, Freguesia da Camacha, Concelho de Santa Cruz - Arquivo e Biblioteca da Madeira - Archeevo
[i] Biblioteca e Arquivo Histórico da Economia, Secretaria- Geral do Ministério da Economia, DROPM- DOP, Distrito do Funchal, pasta 85 Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Actas da Câmara de Santa Cruz e Colecção de Jornais Falar em carrossel é evocar um sabor a nostalgia. Populares, desde o século XVIII, nos parques públicos pela Europa fora, inicialmente movidos a tracção animal, depois por máquinas a vapor e finalmente a energia eléctrica, o carrossel é uma diversão clássica que nunca perde a sua magia. Que é um divertimento antigo é ponto assente, quão antigo se estivermos a falar da Camacha na ilha da Madeira, a questão ganha outra dimensão. Para os que já passaram a fasquia da meia-idade, as memórias vão, com certeza, dirigir-se aos inícios dos anos sessenta do século vinte, um pouco antes do ajardinamento do parque da Achada, por altura dos arraiais de Nossa Senhora da Conceição e Festa do Espírito Santo... ou pelos menos é isso que nos relatam os documentos oficiais. Contudo a primeira referência é bem mais antiga e surge num pedido feito à Câmara Municipal de Santa Cruz, levado à sessão de 13 de Maio de 1926. Nesse pedido Victor Cardozo, morador em Santa Cruz, pedia licença para instalar um carrossel na Achada da Camacha, entre 22 de Maio a 15 de Junho. O requerimento foi deferido e pode-se presumir que se terá efectivado, apesar de não se terem encontrado outros documentos ou testemunhos que o confirmem. De notar também que nesta altura a Camacha já tinha electricidade, mas não dispunha ainda de estrada apropriada a viação acelerada o que deve ter tornado a tarefa de o transportar até a Achada uma operação ainda mais complexa. A Festa do Espírito Santo terá decorrido entre 22 e 24 de Maio e, através dos relatos na imprensa da altura, sabe-se que era um arraial que atraia sempre muitos visitantes, pelo que os camacheiros só depois disso terão tido oportunidade de usufruir e apreciar o carrossel de forma mais serena. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Câmara Municipal de Santa Cruz
|
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
Categories |