História, histórias e curiosidades
Os nossos primeiros mortos foram sepultados no Caniço. Depois, com a construção e consagração da Ermida de S. Lourenço em 1674[i] criou-se a possibilidade de o enterramento passar a ser feito na Camacha. Todavia não foi um processo imediato dado a maioria dos então moradores na freguesia disporem, por herança de seus antepassados, sepulturas nas igrejas do Caniço. Passaram-se dez anos até o primeiro defunto ser sepultado na ermida. Até o final do século, sepultaram-se duas dezenas e embora fossem maioritariamente pessoas de poucas posses, que por isso mesmo não dispunham de covas de família, alguns membros das famílias mais abonadas optaram pela ermida, expressando essa vontade em testamento. Entre eles Francisco Gonçalves Salgado, falecido em 1694 e que foi quem ergueu a capela. Apesar de a ter oferecido ao rei, para possibilitar a criação da freguesia, fez por garantir alguns direitos aos seus descendentes, nomeadamente o direito à sepultura implantada no meio da dita capela. Entre 1700 e 1738, por motivos que ainda não foi possível apurar, a Camacha perdeu o estatuto de paroquia e esteve de novo anexada, durante esse período, ao Caniço. Apenas alguns familiares de Francisco Salgado, nomeadamente a sua viúva em 1711, foram sepultados na ermida. Em 1738 a paróquia recuperou o seu estatuto, regressou um padre à freguesia e todos os sacramentos voltaram a ser ministrados na Camacha. À medida que a população foi crescendo a pequena igreja foi se tornando exígua para acolher todos os defuntos e em 1768 tornou-se necessário consagrar o adro, para aí se fazerem novas sepulturas. Em 1783 foi construída uma igreja maior, a actual igreja matriz, que voltou a acolher as sepulturas. Com o século dezanove veio também a tomada de consciência dos malefícios para a saúde pública, em consequência da prática de enterrar os mortos dentro da igreja. Em Portugal o liberalismo ditou, em 1835, a primeira lei que o proibia e impunha a construção de cemitérios. Por cá começou-se a pensar no assunto e o Conde de Carvalhal, logo em 1836[ii] pôs um terreno à disposição para ser construído um cemitério na Camacha. Em 1844 foi promulgada a lei de Saúde Pública que obrigava ao enterramento nos cemitérios mas na Camacha nada aconteceu até 1851[iii] em que foram despoletadas negociações entre António Emídio de Sousa e Diogo Taylor, cada um deles a oferecer um terreno junto à igreja para fazer o cemitério e a Câmara de Santa Cruz, que estava a ser pressionada pelo Governo Civil para pôr em prática a lei e construir cemitérios em todas as freguesias do concelho. As negociações perduraram até 1853, mas só em 1856, coagidos pela epidemia de cólera que diariamente matava pessoas, aceitaram o terreno proposto pelo Conde Carvalhal, tendo aí sido criado o cemitério, onde ainda hoje se mantém. Foi criado, deu-se início aos sepultamentos mas a obra não ficou acabada. Em Novembro de 1857, António Emídio de Sousa enviou um ofício à Câmara no qual aceitava a incumbência de cobrar os covados, mas alertava para o facto de vários habitantes se recusarem a pagar, uma vez que o cemitério não estava acabado. A Câmara rejeitou essa pretensão e reforçou a exigência enviando uma notificação ao juiz eleito, João Ferreira, para fazer cumprir o pagamento. Em 1858 continuava por acabar e o padre Christiano Augusto Machado pediu à Câmara que colocasse uma cruz no cemitério, esse pedido, sim, foi deferido e autorizado o gasto de três mil reis. Em 1860 o jornal a Voz do Povo chamou a atenção para o estado pouco digno do cemitério da Camacha. Em Novembro de 1861 voltou a falar no assunto atendendo a que nada tinha sido feito para resolver a questão. Em Setembro de 1862 engrossou o tom das reclamações “ O cemiterio da Camacha está servindo de pastar gado, a Camara de Santa Cruz olha com indefferença esta affronta lançada nas sinsas dos que dormem no coração da terra: por vezes tem imprehendido aquella obra; deu-lhe começo e parou, deixando-a em peor estado, se a quantia para aquella obra foi aprovada pelo Concelho do Districto, se o dinheiro existe, se a obra se começou porque não ser conclue? esperamos pela resposta.” As revindicações públicas acabaram por ter resposta e em Outubro do mesmo ano José Marciano da Silveira[iv] congratulava-se pelo resultado obtido: “O cemiterio da Camacha Vae uma obra de truz: Não se devia esp’rar menos Da Camara de Santa Cruz, Mas contudo, foi preciso Eu de cá acender-lhe a luz”. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Diocese do Funchal, Câmara Eclesiástica, Liv. 1º, p. 59.
[ii] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira -Actas das sessões da Câmara Municipal (1834-1837) [iii] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira -Actas das sessões da Câmara Municipal (1848-1854) [iv] Proprietário, Redactor e Responsável pelo jornal a Voz do Povo. Nasceu na Camacha. Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, A Voz do Povo
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Em 1791 os moradores da Camacha fizeram um apelo[i] à rainha D. Maria I, no sentido de manter o benefício das águas de Domingo e fundamentavam o seu pedido numa carta de lei do rei D. Manuel que instituía o direito de todos a essas águas. Para melhor fundamentar o que solicitavam acrescentavam que as águas “ de que se utilizavão os suplicantes de duas levadas que passando pelas proprias terras dos suplicantes vão regar e fertilizar a freguesia do Caniço possuidor dos spirito da inveja, e da emolação tem privado aos suplicantes dessa limitada agoa dos Domingos.” Antes de se dirigir à rainha, esta mesma reivindicação já tinha sido apresentada à Junta Real da Fazenda na Madeira que a tinha indeferido, provavelmente com base no facto de as duas levadas, referidas no pedido, pertencerem a proprietários do Caniço cujos antepassados as tinham construído. A levada do Caniço julga-se ter sido iniciada por volta de 1460, por Álvaro de Ornelas[ii]. Tem início na margem da Ribeira do Porto Novo, um pouco acima dos Salgados e por aí segue até ao Caniço. A Levada do Pico do Arvoredo nasce nos altos do Rochão, na margem da ribeira de Pedro Lourenço, desce passando pelo centro um pouco acima da igreja, atravessa o ribeiro, segue pela Ribeirinha junto ao caminho antigo, continuando por aí abaixo até o Caniço. Apesar da sua origem não estar tão bem datada quanto a Levada do Caniço, algumas fontes permitem-nos situá-la também, nos primórdios do povoamento. Numa sentença proferida pelo Tribunal de Santa Cruz em 1892, relativa a um processo contra Manuel Vieira do Rochão, por desvio de águas da levada, o Tribunal considera que “ pela prova dos autos se mostra que a Levado Pico do Arvoredo é das que na Madeira, segundo o que reza a história, se fizeram nos séculos XV e XVI para a irrigação principalmente das terras que produziam cana de açúcar[iii]”. O resultado, neste caso, foi a favor dos proprietários atendendo a que se tratava, efectivamente, de uma questão complicada. Aquando da construção das levadas, a Camacha era meramente a serra do Caniço, os proprietários fizeram as levadas a suas expensas e os seus descendentes asseguraram a sua manutenção ao longo dos séculos. Por outro lado, à medida que a Camacha cresceu e os terrenos foram se dividindo por novos proprietários, as levadas que os percorriam não traziam qualquer benefício aos donos das terras por onde elas passavam. No século dezanove começou a ser construída uma nova levada que iria atravessar toda a parte superior da Camacha: a Levada do Furado ou da Serra do Faial, como hoje é conhecida. Fruto de um longo e atribulado processo que se iniciou em 1830 com a criação da Sociedade da Levada Nova do Furado, uma companhia por acções que tinha como objectivo trazer as águas perdidas nas serras do Faial até o Funchal. Foi um decurso com muitos avanços e recuos, que acabou nas mãos do Governo, tendo apenas sido finalizada setenta e cinco anos mais tarde, em 1905. Mas na última década do século dezanove já esta “nossa” levada atravessava a Camacha e a exemplo das anteriores, sem trazer qualquer benefício para a localidade, como se pode constatar numa crónica assinada por Luiz d’O. P. Coelho, publicada em Setembro de 1894 no Diário de Notícias[iv]. Segundo o autor a Camacha “sofre o abandono dos poderes publicos gemendo ao pezo de flagrantes injustiças. Uma destas, por ventura a mais monstruosa é a privação absoluta em que se encontra, de regar com a agua da Ievada do Furado, que, segundo nos informam, ha dois anos não é utilisada pelos moradores d’esta freguezia que tão sacrificados foram nos trabalhos de exploração da mesma Levada. Convem saber- se que esta atravessa a Camacha em toda a sua extensão e vae fertilisar outra freguezias, sem que os lavradores d'aqui gosem de igual beneficio! Uma ironia pungentissima. Os terrenos occupados pela levada foram adquiridos das particulares por uma forma tão equitativa que a maior parte d'esses proprietarios nunca chegaram a vêr o preço de taes expropriações! Na illusoria esperança de que os seus terrenos seriam contemplados com parte d'essa agua o proprietarios deixaram ele reclamar o preço das expropriações”. Este foi um argumento que se repetiu em vão, ao longo de toda a década e as águas desta levada, foram ao longo dos anos consequentes, mote para muitas contendas, algumas mesmo com alguma violência. Nos dias de hoje, apenas a Levada do Caniço mantem alguma integridade. A Levada do Furado, para além de ter perdido o troço do Ribeiro Serrão, já não tem água e da Levada do Pico do Arvoredo, sobrevivem apenas alguns pequenos fragmentos. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Torre do Tombo, Provedoria e Junta Real da Fazenda do Funchal, Repartição do Erário, Ordens Enviadas à Junta, Livro segundo de registo de ordens expedidas pelo Real Erário à Junta da Real Fazenda, p. 145. [ii] RIBEIRO, João Adriano, FREITAS, Lourenço de G., FERNANDES José Baptista- Moinhos e Águas do Concelho de Santa Cruz [iii] Revista dos Tribunais- books.google.pt [iv] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, Diário de Notícias A água pública na Camacha constituiu, desde sempre, um problema: as nossas principais levadas, não eram nossas e não serviam a agricultura local e as fontes públicas, para consumo humano, tardaram muito a surgir nesta localidade.
Um veraneante, em 1894, traçou um retrato muito pouco lisonjeiro sobre essa realidade camachense, numa crónica publicada no Diário de Notícias[i]: As águas potaveis afiguram-se por sua natureza excellentes; mas, inquinadas à nascença podem conter germens deliterios. A maior parte da agua de alimentação borbulha do solo e cae em poças onde se encontram folhas e materias vegetaes em decomposição e como é natural quaesquer outros elementos animaes que se lhe possam agregar. N’estes reservatórios tudo é susceptivel de cair e cães e gatos podem lá ir beber- pois dahi se fornece a população. A melhor e cremos que a unica fonte abrigada, construida de pedra e cal, com uma boa torneira, um verdadeiro chafariz publico, é a que existe na quinta do digno pár do reino, o sr. Agostinho de Ornelas e que s. exa. faculta ao serviço publico. No mesmo diário, três anos mais tarde, as Notícias da Camacha regressam a este assunto, desta vez com informações mais positivas: O snr. Manuel Fllippe Gomes: digno regedor da freguezia da Camacha, e que tem sido sempre incansavel em pugnar pelos interesses d'aquella pittoresca parochia, acaba de obter um importantissimo melhoramento para aquella Iocalidade: a construção de um marco fontenario proximo da egreja. E' vergonha dizel-o: a freguezia da, Camacha, que possue aguas purissimas, não tem um marco fontenario, mas brevemente esta falta será remediada. O ilIustre pár do reino sr. conselheiro Agostinho d'OrnelIas, a pedido do sr. Filippe Gomes, ofereceu a agua necessaria para o abastecimento do novo marco sendo esta generosa offerta avaliada em mais de duzentos mil reis. O anúncio da obra foi feito no mês de Maio e no final de Agosto do mesmo ano, já o Diário informava da sua conclusão, enaltecendo o empenho de Manuel Filipe Gomes, de Agostinho de Ornelas e também de Jonh H. Payne, um cidadão britânico que na altura frequentava a Camacha Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Sob a alçada do VII Governo da Ditadura Militar, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Santa Cruz elaborou, em meados de 1930, um extenso plano de obras a serem executadas num prazo de dois anos, por todo o concelho. Para a Camacha planeou a regularização do Campo da Achada, o alargamento da estrada entre a Achada e a Igreja, o alargamento da estrada da Igreja até a quinta do Conselheiro Aires de Ornelas e daí seguir sempre até o Caminho do Norte e baldios. Em frente à quinta seguir a estrada para a Levada do Pico, João Ferino e Santo da Serra. Fazer duas escolas no Rochão, uma para cada sexo e igualmente mais duas na Achadinha ou Casais d’Além. Ambicionava ainda estabelecer fornecimento de luz eléctrica recorrendo à água da ribeira do Porto Novo. Na parte mais central da freguesia uma casa sobrada, implantada junto à Igreja, atrapalhava o concretizar dos planos, daí a que na reunião de 24 de Julho de 1930 a Comissão tenha deliberado: Foi resolvido proceder à expropriação por utilidade pública da casa situada no sítio da Igreja da Camacha que fica na frente sul do adro da Igreja Paroquial e que é pertença de João de Freitas residente no mesmo sítio, estando a matriz predial urbana em nome de Francisco de Freitas.[i] Em Setembro do mesmo ano, João de Freitas respondeu à pretensão da Câmara: João de Freitas, negociante, casado, do sítio da Igreja, freguezia da Camacha tendo conhecimento que a Exma. Câmara pretende expropriar judicialmente o prédio urbano que o suplicante possue no dito sítio e freguesia, em frente à igreja paroquial, vem respeitosamente requerer à Exma. Câmara que em caso afirmativo seja a expropriação feita amigavelmente conformando-se o suplicante em receber a quantia de dez mil escudos pela expropriação do seu referido prédio com a condição também de receber todo o material que for retirado proveniente da demolição do mesmo prédio, fazendo-se esta por conta da Exma. Câmara.[ii] A Câmara considerou o negócio vantajoso e para o concretizar requereu isenção de pagamento de sisa, atendendo a que o objectivo desta aquisição era a demolição da casa para fazer um largo em frente ao adro da igreja e alargar os caminhos que o circundavam. Foi concedida a isenção em Janeiro de 1931 e presume-se que a obra tenha sido efectuada por essa altura. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) A Camacha do início do século vinte era uma terra de prosperidade. Com cerca de quatro mil e setecentos habitantes, assentava grande parte da sua riqueza nas criações dos seus oficiais de obra de vimes: cadeiras, mesas, sofás e cestas que tinham reconhecimento e fama internacional. Em 28 de Junho de 1914, o assassinato do arquiduque Francisco Fernando da Áustria iria desencadear toda uma série de acontecimentos que veio findar com esse estado de abastança. Na Madeira, em Abril de 1915, os efeitos colaterais da guerra traduziam-se num porto do Funchal quase parado. Um porto que antes do conflito, tinha seis, sete navios a entrar diariamente, era por esses dias visitado muito esporadicamente, por um ou outro navio e essencialmente pelos que faziam as ligações com as colónias africanas. Sem navios, sem visitantes não se escoavam os produtos e o trabalho de muitos camacheiros deixou de ter procura. Tinham-se passado cerca de nove meses do início da guerra e já muitas famílias camacheiras passavam fome e grandes dificuldades. Foi este o mote que levou os camacheiros à acção. No dia dezanove de Abril cerca de setecentos camacheiros desceram à cidade e dirigiram-se ao Palácio de S. Lourenço para apresentar um conjunto de reivindicações ao governador civil. Delegaram a sua representação no padre João Augusto Faria, no Dr. Alfredo Figueira, no regedor José de Quintal[i] e num proprietário cujo nome não foi possível apurar. As suas reivindicações eram três:
A comissão saiu satisfeita da reunião e aparentemente o assunto estava resolvido. Contudo começou a circular um boato entre os manifestantes que punha em causa o prometido, levando-os a invadir o Palácio de S. Lourenço. Com os ânimos exaltados e instigados por alguns discursos inflamados, nomeadamente de um João Germano Melim[ii], recusaram-se a sair. Nem mesmo com as garantias de resolução do que tinham solicitado, dadas pelo governador. Foi necessária a intervenção da Infantaria 27, que após várias tentativas, lá conseguiu fazer a população dispersar. No desfecho foram detidos vinte e quatro cidadãos, curiosamente maioritariamente do Funchal, que se tinham junto à confusão. Simples arruaceiros ou movidos por interesses políticos, é uma dúvida que ficará para a história. Curioso foi também o impacto da nossa revolta camacheira, a ter direito a uma notícia nacional inserida na Ilustração Portuguesa, revista semanal do jornal O Século, na qual foram publicadas as fotos que abaixo se podem ver. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Por uma referência numa Acta da Câmara Municipal de Santa Cruz sabe-se que José de Quintal era regedor da Camacha em Setembro de 1914, deduz-se que no ano seguinte ainda seria.
[ii] Tanto quanto foi possível apurar seria natural do Santo da Serra, desconhecendo-se qual a sua ligação à Camacha. [iii] hemerotecadigital.cm- lisboa.pt/OBRAS/IlustracaoPort/1915/N481 Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, Diário de Notícias |
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
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