História, histórias e curiosidades
A Achada é dos camacheiros. Mas como e quando este espaço se tornou propriedade de todos?
No dia dezasseis de Fevereiro de 1906 o tribunal da comarca de Santa Cruz proferiu uma sentença desfavorável ao autor de uma acção contra a Câmara de Santa Cruz. Tratava-se de Luiz da Rocha Machado, abastado proprietário, que pretendia através da mesma acção assegurar o seu direito a uma vasta parcela da referida Achada. Tudo começara três anos antes, com a inserção de um anúncio nos jornais da época: “Camacha - Jogo da Bolla. Vende-se mais de metade deste magnifico plano onde os senhores inglezes costumam fazer diversos jogos.” A Achada da Camacha, que era tida como logradouro comum era afinal, em grande parte, propriedade privada. E por, no geral, ser entendida como propriedade comum, logo se levantaram vozes a oporem-se à concretização de um negócio que poderia pôr fim à livre utilização do espaço. J. B. Blandy, numa carta que o Diário de Notícias publicou no dia vinte e seis de Abril, quis alertar para a inconveniência da venda, salientando que “Poucos funchalenses haverá que não tenham gozado d’aquelle aprazivel logar, onde me lembro de ter visto alguma vez mais de sessenta carros de bois e não inferior numero de cavallos de sella. Parece-me que, embora aquella freguezia faça parte do concelho de Santa Cruz, são os funchalenses que mais gozam da Camacha, e, sem a Achada, não terão onde possam abrigar os carros e os cavallos, e estar livremente sem dependencia ou favor dos donos das quintas ali existentes. Parece-me, pois, que os interessados, o público funchalense, devem pedir à camara de Santa Cruz que promova a expropriação da Achada para logradouro publico”. J. B. Blandy prontificou-se ainda a contribuir financeiramente, caso a câmara decidisse criar uma subscrição pública para aquisição dos terrenos em questão, lembrando que isso já tinha sido feito no passado. Efectivamente, em 1897, Manuel Filipe Gomes, regedor da Camacha e vereador na Câmara de Santa Cruz, liderou um processo de compra de uma parcela de terreno na Achada, através de uma subscrição pública. Foram diversos os beneméritos, entre eles o conselheiro Agostinho Vasconcelos de Ornelas, que contribuiu com quarenta e cinco mil reis. Contudo, isso não foi suficiente para a aquisição do total do espaço. Perante a possibilidade da venda privada, Manuel Vieira Sapeta, Presidente da Câmara de Santa Cruz, fez publicar no mesmo dia vinte e seis, nos jornais regionais, um protesto em nome da Câmara e dos seus munícipes, no qual asseverava recorrer a todos os meios legais para impedir qualquer transacção que pusesse em causa “que o falado terreno é de tempos immemoriaes logradouro commum”. Passados dois dias, João Rangel Faria Abreu e Manuel Correia, proprietários dos terrenos em causa defenderam a sua razão, num “Contra Protesto” publicado na imprensa regional, no qual declararam os “incontestáveis direitos de propriedade e posse de longa data e de tempos quasi immemororiaes exercidos pelos mesmos signatarios e seus antecessores”. Manuel Ferreira de Nóbrega, António de Freitas Aguiar, João Rodrigues, António Gonçalves, Januário Ferreira, Germano de Miranda, são alguns dos camacheiros que se prestaram a responder a um inquérito realizado na Camacha, por iniciativa do presidente da Câmara de Santa Cruz, com o objectivo de auscultar a população local em relação a esta situação. Apesar destas medidas, no dia vinte e seis de Maio, Luiz da Rocha Machado formalizou a compra do terreno ampliando assim, julgou ele, a sua “Quinta Bean”. No entanto nunca pode efectivar essa aquisição e em Maio de 1905 requereu na comarca de Santa Cruz uma acção contra a câmara, por se considerar com direito ao terreno que havia comprado. Em Agosto do mesmo ano foram inquiridas as testemunhas e em Fevereiro do ano seguinte veio a sentença que entregou a totalidade do terreno para usufruto da população da Camacha. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira · Colecção de Jornais · Câmara Municipal de Santa Cruz - Actas das sessões da Câmara Municipal (1900-1907)
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A Camacha tem dez sítios, assim diz a cantiga mas quando e como foi feita essa demarcação é uma informação que se perdeu no tempo. Podemos, contudo, ficar com uma ideia de desde que época as diferentes designações toponímicas faziam parte da vida do dia a dia das pessoas. Essa ilação podemos retirar dos documentos que acompanham as diferentes fases da vida das gerações passadas ou seja os registos de baptismo, crisma, casamento e de óbito.
Com o documento da demarcação da nova freguesia em 1680 [1], ficamos a saber que Nogueira e Ribeirinha eram designações já usadas na época. E se Ribeirinha manteve-se inalterada no passar dos tempos Nogueira surge-nos em diversas grafias: Nogeira, Anogeira, Anogueira, Nogueira. Os restantes sítios vão sendo referidos nos registos a partir de diferentes datas: Achadinha (Chadinha, Axadinha) – 1750 Casais d’Além (Cazas dalem, Cazaes dalem) – 1750 Igreja – 1753 Rochão (Rocham, Richam, Richão, Rixão, Roxão)- 1753 Vale Paraíso (Val do Paraizo, Valle do Paraizo) – 1759 Ribeiro Fernando (Ribeiro do Farnando, Ribeiro do Fernando) – 1792 Salgados – 1797 Ribeiro Serrão (Ribeiro do Serrão) - 1851 Nos registos do primeiro século de existência da freguesia da Camacha surgem também designações de sítios, que mesmo não sendo os principais, se mantêm até hoje: Fonte Concellos, Palheiro do Ferreiro, Pinheirinho, Achada do Caniço. E ainda outras que se perderam no tempo: Amoreiras, Ribeira do Porto Novo, Pereiro, Pomar, Moinho, Caldeira, Ribeiro Fundo, Banda d’Além.[2] Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [1]Torre do Tombo, Cabido da Sé do Funchal, Documentos relativos ao Bispado, Maço 2, Carta de D. António Teles da Silva para a criação das novas igrejas e curados do bispado [2] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Registos Paroquiais- Paroquia da Camacha Chamou-se João, a primeira criança a ser registada, aquando do seu baptismo, na Igreja de S. Lourenço da Camacha. Apesar da ermida, que adquiriu o estatuto de igreja com a criação da paróquia, já estar devidamente autorizada pelo alvará de onze de Junho de 1674, emitido por D. Gabriel de Almeida, Bispo do Funchal para nella se levantar altar, e dizer nella Missa, e se celebrarem os mais oficios divinos”[1] só no dia dezanove de Dezembro de 1680 foi dado início ao registo dos diferentes sacramentos. João era filho de Manuel Pires e Ana Caldeira, Mathias de Freytas e Anna Caldeira foram os padrinhos e foi o Padre Gaspar Pinto Correia quem celebrou o baptismo.
Em vinte e sete de Janeiro de 1681 foi feito o primeiro registo de casamento entre Lourenço de Freitas; filho de Roque de Freytas e Anna Baptista, e Maria da Matta; filha de Manoel Gonçalves e Domingas Vieira. O casamento foi celebrado pelo padre do Caniço, Francisco de Sousa e Sá e Francisco Gonçalves Salgado e o capitão António de Figueiró Utra, de Santa Cruz, foram os padrinhos. Manuel Vieira, pobre assim nos informa o registo, foi o primeiro defunto a ser sepultado na Igreja de S. Lourenço em dezoito de Dezembro de 1684[2]. Em nove de Julho de 1768 António, com seis anos e filho de Manuel Caldeira Martins, foi sepultado fora da Igreja, junto à porta, dando-se assim início aos sepultamentos no adro da Igreja por falta de espaço na mesma. Era então padre José Telo de Menezes.[3] A cinco de Agosto de 1856 foi sepultado o primeiro defunto no cemitério da Camacha, cujo terreno foi oferecido pelo conde Carvalhal. Chamava-se António, tinha dois anos e era filho de José da Motta e Angélica de Jesus, moradores no sítio da Igreja. O padre era Cristiano Augusto Machado[4] FN [1] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Diocese do Funchal, Câmara Eclesiástica, Liv. 1º, p. 59. [2] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Registos Paroquiais- Paroquia da Camacha, Liv. 1 [3] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Registos Paroquiais- Paroquia da Camacha, Liv. 3 p. [4] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Registos Paroquiais- Paroquia da Camacha, Liv. 5 e 6 Na tarde de vinte e quatro de Outubro de 1842, a forte precipitação, após oito dias de continuadas chuvas, fez desencadear mais uma aluvião, fenómeno recorrente na nossa ilha que acarreta sempre grandes sustos e prejuízos a toda a população.
Através das actas da Câmara Municipal de Santa Cruz ficamos a saber que “As pontes de alvenaria e archetes da Camacha também foram destruídas: muitas derrocadas sucederão derrocando grandes arvores levando as enxurradas muitas culturas de batatas (vulgo semilhas) e inhames submergindo algumas casas, palheiros e gados sendo victima desta catástrofe um môço de José Teixeira das Neves, da freguesia da Camacha, unico que pereceo em todo o concelho”[1] Os jornais da época relatam, também, o sucedido. O Imparcial[2] de nove de Novembro de 1842 diz que “A Camacha ficou quasi incommunicavel, pelo grande deterioramento que sofreu a estrada; perdeu os seus melhores arvoredos e mudou de aspecto”. Os jornais internacionais deram igualmente algum destaque ao ocorrido, a partir de um artigo do The Times[3]: o The Examiner [4] em dezanove de Novembro de 1842 faz referência e em dez de Abril de 1843 o jornal The Sydney Morning Herald[5] reporta também ”The village of Camacha is in a most deplorable condition” Do esforço de recuperação, chega-nos informação através do Defensor[6] de dezassete de Dezembro de 1842 que, numa pequena notícia com o título “Estrada da Camacha”, nos dá conta que “se achão muito adiantados os repairos desta interessante estrada, feitos pelos povos d’ali, ajudado com as liberaes contribuições do Snr. Bean e de outros estrangeiros” Através de um ofício do regedor, dirigido à Câmara de Santa Cruz[7] sabe-se ainda que a ponte abaixo da igreja foi reconstruída de melhor forma que a anterior e que o trabalho foi realizado por cento e cinquenta ordenanças, tendo sido o material pago pelos britânicos que mais frequentavam aquela estrada. Sendo este tipo de tempestade, que desencadeia as aluviões, um fenómeno que se tem repetido ao longo dos tempos, com certeza não terá sido a única vez que a Camacha terá sido afectada. Este destaque acontece, apenas e graças às várias fontes documentais da época. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [1] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Actas das Sessões da Câmara Municipal de Santa Cruz ( 1842-48) , p.16v [2] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, [3] The Times – Wikipédia [4] The Examiner, books.google.pt, p.746, Dreadful Storm At Madeira. [5] https://trove.nla.gov.au/newspaper/ Newspapers & Gazettes,,The Sydney Morning Herald (NSW : 1842 - 1954) , Seg 10 Abr 1843 , Page 2 , DREADFUL STORM AT MADEIRA. [6] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais [7] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Câmara Municipal de Santa Cruz, livro do Borrador 157, p.5 5 Criada a freguesia logo a capela, que Francisco Salgado construiu e ofereceu ao rei para esse efeito, se mostrou demasiado pequena para albergar toda a população. Em 1683 o padre Gaspar Pinto Correia, enviou uma petição em seu nome e da população, ao Conselho da Fazenda, no sentido de aumentar a pequena ermida. Deferido o pedido, o Vedor da Fazenda deu instruções ao Procurador da Fazenda na Madeira para orçamentar e pôr em pregão a obra[1]. É esse documento que se transcreve abaixo:
"Registo do mandado do Conselho da fazenda pertensente a obra da igreja de S. Lourenço do lugar da Camacha O Conde Manuel Telles da Silva dos Conselhos de Estado e Guerra do Príncipe nosso senhor gentil homem de sua camara vedor de sua fazenda e... Faço saber a vós procurador da fazenda da ilha da Madeira que no Conselho da Fazenda se veio hua petiçam do vigairo e fregueses da Igreja de S. Lourenço da Camacha desse bispado na qual relatão que informandosse Sua Magestade do Bispo Dom Frei António Telles da Silva por conselho seu... seu consentimento para se criar de novo a dita freguesia em razão do muito povo que ha naquele distrito e grandes descomodidades de ribeiras e compridos caminhos para poderem ir ao Canisso donde erão fregueses E porque a dita igreja de S. Lourenço onde se ergio a dita freguesia por ser unica que ha naquele distrito a qual é muito limitada e também porque mais das quatro partes dos fregueses não cabem dentro nella por ter passante de duzentas almas e não tem junto... porlos ao abrigo do tempo alem doutro major inconveniente como era o de não poderem ouvir missa todos e assistirem aos ofícios divinos Vos Sua Magestade como principe tam catolico les... acodir com o necessario porque as almas dos vassallos huessem todas as consolações espirituais... assentar a dita igreja manda-lhe o dito senhor... por serem os fregueses pobres e não podião...de suas fazendas ... não terem... o mais referiam na dita petiçam a informação que se mandou por mão per nosso antecessor ... digo de que tudo... procurador da fazenda pelo... mando mandeis fazer apontamento e orçamento desta obra e a mandareis por em pregão E do ultimo lanço que ouver mandareis certidão ... ao conselho da fazenda ... ordenar o que mais conveniente for...Este Miguel de Bitancora o fez em Lisboa a dez de Julho de mil e seiscentos e oitenta e três anos ... Manuel Teles da Silva ... do conselho da Fazenda dezanove de julho de seiscentos e oitenta e três // registado no livro dos mandatos...dezanove de julho de mil seiscentos e oitenta e três // Vasconcelos" Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [1] Torre do Tombo, Provedoria e Junta Real da Fazenda do Funchal, Secretaria da Junta, Registo Geral da Fazenda e Contos, Livro de Registo das provisões e mais ordens da fazenda e contos da ilha da Madeira, p. 278. |
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
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