História, histórias e curiosidades
«… Às seis horas de uma manhã de sábado, partimos da cidade num pequeno carro, puxado por dois bois, sentadas de costas para eles… Por volta das nove horas, entramos na aldeia dispersa e os habitantes correram para as portas das suas casas, para ver quem chegava. Paramos na Venda para fazer nossa primeira compra doméstica - um pão - e em cinco minutos estávamos em nosso chalé. Era um lugarzinho engraçado. Quatro quartos, todos conectados, e um quinto que se projectava de um lado, compunham a nossa residência palaciana. A porta da frente dava para um quarto, de onde uma porta dava para o quarto ao lado, e outra para um terceiro, parte do qual havia sido isolado para formar uma passagem; este levava de um lado para a sala de estar e de outro para a cozinha, onde encontrámos três vizinhas muito bem instaladas, tentando ferver uma chaleira. O chão estava inundado de água, mas o nosso português sendo limitado decidimos adiar explicações… Então nós resolvemos despedir as nossas gentis, mas intrometidas, vizinhas e tomar o pequeno-almoço. Uma rapariga de quatorze anos parecia ter conseguido pôr a chaleira a ferver, e concordamos que seria um plano útil contratá-la… chamei Carolina ao meu quarto, fechei a porta com cuidado e pronunciei de forma persuasiva e significativa a palavra “Creada”. A Carolina olhou para mim espantada, depois o seu rosto relaxou num largo sorriso e disse “Si, Senhora!” Então nós as duas desatamos a rir à gargalhada e a nossa entrevista chegou ao fim… Voltei para a cozinha para encontrar a Outra Rapariga sozinha, examinando a cozinha inundada e a torneira da caldeira pingando. "Eu contratei a Carolina", disse-lhe orgulhosa. Então acomodamo-nos para o pequeno-almoço. Demorou algum tempo aquela primeira refeição. A Outra Rapariga tinha pedido dois ovos a uma das vizinhas metediças e ela voltou só com um. “Eu disse dois ovos,” insistiu a Outra Rapariga. “Sim, sim”, disse a mulher. “A galinha está a pôr mais um, não vai demorar nem um minuto.”… Após os primeiros três dias, todas as tardes saíamos para um longo passeio pelas colinas. Uma vez fora da aldeia, poderíamos percorrer quilómetros sem encontrar mais do que meia dúzia de pessoas ociosas como nós. Passávamos por eiras onde os homens batiam o trigo com clavas de madeira, que subiam e desciam ritmicamente, enquanto as mulheres amarravam a palha, e um ou dois rapazes dedilhavam o machete, um instrumento do tipo viola. Continuavam cantando e tocando a noite toda durante a colheita, às vezes dançando na eira. Depois passávamos por chalés cheios de ramalhetes de ervas colhidas na véspera de São João e amarradas sob os beirais para afastar o mau-olhado. Uma mulher que levava os seus perus, para um passeio, estava claramente desconfortável por nós estarmos a olhar para sua residência. Certa vez, atravessando o arvoredo, vimos o cortejo fúnebre de um bebezinho: estava num pequeno caixão branco, aberto, carregado por seis meninas vestidas de branco e azul, e seguido por vários meninos pequenos. Antes de saírem da sombra das arvores, vimos as crianças se aglomerarem em volta do caixão e levantarem o véu, para mais uma vez olhar o rosto do bebé. Costumava ser um choque voltar desses passeios à tarde, onde nos deparávamos com coisas estranhas e curiosas, para encontrar o jogo, muito inglês, de croquet sendo jogado na Achada, com uma multidão de crianças da aldeia a assistir…» Lilian Fairbrother Ramsey (1877 – 1974) foi uma escritora inglesa que viveu em West Wittering, Inglaterra, e à qual já foram feitas aqui diversas referências graças à sua aparente ligação à Camacha, que se pode constatar nas publicações anteriormente feitas: Amores-perfeitos ; Teach Me Thy Way, O Lord (CAMACHA) ; The Studio, Camacha Tudo indicava uma estadia nesta localidade e os estratos do conto de sua autoria que acima se reproduzem, vêm confirmar esse pressuposto. O conto foi publicado na The Wide World Magazine[i], em 1910, e supõe-se que a autora terá estado na Madeira num dos anos anteriores, dessa primeira década do século vinte. Para fugir do calor do Funchal terá alugado, juntamente com outra rapariga uma pequena casa, pertencente a ingleses, que ficava cerca de quinze metros abaixo da Levada da Serra. Das Carolinas nascidas na última década do século dezanove a que apresenta maior probabilidade de ser a “creada” do conto terá nascido em 1894, filha de José Teixeira de Jesus e de Maria de Jesus, nos Casais d’Além, pelo que se pode conjecturar por este e outros pequenos indícios que a casa ficaria por ali, entre os Casais d’Além e Achadinha. Abaixo, a versão original: «At six o’ clock one Saturday morning we started from town in a small carro, drawn by two bullocks, sitting with our backs to them. About nine o’ clock we entered the straggling village and the inhabitants ran out to their cottage doors to see who was coming. We stopped at the venda to make our first household purchase— a loaf of bread —and in another five minutes we were at our cottage. It was a funny little place. Four rooms, all connected, and a fifth jutting out on one side comprised our palatial abode. The front door opened into a bedroom, from which a door led into the next bedroom, and that again into a third, part of which had been screened off to form a passage; this led on one side into the sitting room, and on another into the kitchen, where we found three neighbors kindly endeavoring to boil a kettle. The floor was flooded with water but our Portuguese being limited we decided to defer explanations… So we resolved to dismiss our kindly but officious neighbors, and get some breakfast. A girl of fourteen seemed to have persuaded the kettle to boil, and we agreed it would be a useful plan to engage her… I summoned Carolina into my bedroom, closed the door carefully, and uttered persuasively and meaningly the word “Creada” ( servant). Carolina gazed at me with stupefaction; then her face relaxed into a broad grin, and she said, comprehendingly, “ Si, Senhora!” Then we both burst out into loud laughter… I returned to the kitchen to find the Other Girl in sole possession, surveying the damp kitchen and the leaking tap of the boiler. “ I have arranged with Carolina,” I her loftily. Then we settled to breakfast. It took some time that first meal. The Other Girl had asked one of asked one of the officious neighbors for two eggs. She returned with one. “ I said two eggs,” insisted the Other Girl. “ Yes, yes,” said the woman. The hen is just laying one; she won’t be a minute… After the first three days we went for a long ramble into the hills every evening. Once outside the village we could go for miles without meeting more than half a dozen people idling like ourselves. We would pass round threshing floors whereon the men would be beating out the corn with wooden flails, which rose and fell rhythmically, while the women bound up the straw, and one or two boys strummed on the machete, an instrument of the guitar type. They would keep up their singing and playing all through the night during the harvest, sometimes dancing on the threshing floor. Then we would pass cottages hung with bunches of herbs gathered on St John's Eve, and tied up under the eaves to keep off the Evil Eye; a woman taking her turkeys for an evening walk was clearly uneasy as we stood staring at her abode. Once, going through the woods, we saw the funeral procession of a tiny baby; it was in a little white open coffin, carried by six wee girls dressed in white and blue, and several small boys followed. Before they left the shadow of the woods we saw the children cluster round the coffin, and raise the veil to take another look at the baby's face. It used to be quite a shock to return from these evening walks, with their strange and curious sights, to find the very English game of croquet being played on the achada, a crowd of village children looking on.» Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] The Wide World Magazine: An Illustrated Monthly of True Narrative, Adventure, Travel, Customs, and Sport, Volume 24- G. Newness, 1910 [i] The Wide World Magazine: An Illustrated Monthly of True Narrative, Adventure, Travel, Customs, and Sport, Volume 24- G. Newness, 1910
0 Comments
Leave a Reply. |
Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
Categories |