História, histórias e curiosidades
À volta da casa dos nossos pais havia uma profusão de levadas. Se calhar algumas delas não mereciam esse nome eram simples canais de rega que no estio levavam a água de rega marcada, à hora certa. Mas, para mim todas eram verdadeiras levadas. A mais próxima, tão próxima que até passava por baixo na nossa entrada e jardim, era uma levada que descia até ao Caniço. Tinha água todo o ano, não era como as outras que tinham dias e horas. Corria veloz, desde lá de cima, e continuava passando por todos os moinhos, que eram muitos. Antes de cada moinho havia sempre um lavadouro. Mulheres dobradas sobre a pedra, com um tapete de retalhos a “almofadar” para não moer os joelhos, um pilha de roupa semi-lavada, o alguidar de zinco com a “boneca de anil” para branquear, ainda mais, a roupa branca e a roupa com nódoas a corar estendida sobre a erva. Lá em casa havia um poço de lavar, enfiado num quarto de lavar na parte de trás da casa, onde ia uma senhora lavar alguns dias por semana. A senhora Maria, muito velhinha, toda vestida de preto, com um lenço na cabeça e que nos dava beijos molhados com a boca já sem dentes (ai minha rica menina!). A senhora Maria não gostava de lavar algumas peças neste nosso poço de lavar. Ia à levada, atrás do moinho e levava-me com ela. Mas a senhora Maria estava muito velhinha e a senhora Clarinha, que não lavava com sabão azul e só gostava de sabão clarim e OMO, já não ia à levada. Com ela, “democrática”; para quem todas as peças de roupa eram iguais, acabaram-se as idas ao lavadouro. Desapareceu o cheiro a sabão azul, o sol morninho da manhã a bater no chapéu de pano, os pés livres das sandálias inglesas enfiados na água fria, as gargalhadas com as cócegas do musgo aquático a vibrar com a corrente forte da levada e a retirada rápida, assustada, com a advertência de sanguessugas. Mas o fascínio desta levada não desapareceu. Mesmo ao lado havia um moinho por baixo da casa onde vivia a família do moleiro. A única coisa que tínhamos para mandar moer era o milho para as galinhas: -” é para estraçoar, se faz favor”. Até mesmo quando não havia nada para moer arranjava maneira de lá entrar: - Ó Manuela (que era filha do moleiro) vamos ao moinho? Ela não gostava muito, não fosse o pai arranjar-lhe alguma tarefa, mas lá me fazia a vontade. O som da levada já não era o mesmo: a água a cair em cascata para dentro do moinho zumbia com golfadas intermitentes (zuummm… zuummm… zuummm…). Aqui, juntava-se o som cavo e grave das mós a girar em cadência hipnótica, diferente se era milho ou trigo, e de vez quando o chiar dos eixos. Sempre presente o som suave, quase impercetível, das peneiras, grandes, enormes, que separavam a palha das espigas da farinha…alva…cheirosa. O moleiro e a sua família de cinco filhos emigraram para a Austrália no final dos anos 60, o moinho fechou e hoje no seu lugar foi construída uma casa nova… Aida Nóbrega Pupo @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Foto- Grupo de mulheres a lavar roupa numa levada na Camacha – 1932- Álvaro Nascimento Figueira Museu Vicentes
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Autores Somos vários a explorar estes temas e por aqui iremos partilhar o fruto das nossas pesquisas. O que já falámos antes:
Abril 2024
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