História, histórias e curiosidades
Em 1791 os moradores da Camacha fizeram um apelo[i] à rainha D. Maria I, no sentido de manter o benefício das águas de Domingo e fundamentavam o seu pedido numa carta de lei do rei D. Manuel que instituía o direito de todos a essas águas. Para melhor fundamentar o que solicitavam acrescentavam que as águas “ de que se utilizavão os suplicantes de duas levadas que passando pelas proprias terras dos suplicantes vão regar e fertilizar a freguesia do Caniço possuidor dos spirito da inveja, e da emolação tem privado aos suplicantes dessa limitada agoa dos Domingos.” Antes de se dirigir à rainha, esta mesma reivindicação já tinha sido apresentada à Junta Real da Fazenda na Madeira que a tinha indeferido, provavelmente com base no facto de as duas levadas, referidas no pedido, pertencerem a proprietários do Caniço cujos antepassados as tinham construído. A levada do Caniço julga-se ter sido iniciada por volta de 1460, por Álvaro de Ornelas[ii]. Tem início na margem da Ribeira do Porto Novo, um pouco acima dos Salgados e por aí segue até ao Caniço. A Levada do Pico do Arvoredo nasce nos altos do Rochão, na margem da ribeira de Pedro Lourenço, desce passando pelo centro um pouco acima da igreja, atravessa o ribeiro, segue pela Ribeirinha junto ao caminho antigo, continuando por aí abaixo até o Caniço. Apesar da sua origem não estar tão bem datada quanto a Levada do Caniço, algumas fontes permitem-nos situá-la também, nos primórdios do povoamento. Numa sentença proferida pelo Tribunal de Santa Cruz em 1892, relativa a um processo contra Manuel Vieira do Rochão, por desvio de águas da levada, o Tribunal considera que “ pela prova dos autos se mostra que a Levado Pico do Arvoredo é das que na Madeira, segundo o que reza a história, se fizeram nos séculos XV e XVI para a irrigação principalmente das terras que produziam cana de açúcar[iii]”. O resultado, neste caso, foi a favor dos proprietários atendendo a que se tratava, efectivamente, de uma questão complicada. Aquando da construção das levadas, a Camacha era meramente a serra do Caniço, os proprietários fizeram as levadas a suas expensas e os seus descendentes asseguraram a sua manutenção ao longo dos séculos. Por outro lado, à medida que a Camacha cresceu e os terrenos foram se dividindo por novos proprietários, as levadas que os percorriam não traziam qualquer benefício aos donos das terras por onde elas passavam. No século dezanove começou a ser construída uma nova levada que iria atravessar toda a parte superior da Camacha: a Levada do Furado ou da Serra do Faial, como hoje é conhecida. Fruto de um longo e atribulado processo que se iniciou em 1830 com a criação da Sociedade da Levada Nova do Furado, uma companhia por acções que tinha como objectivo trazer as águas perdidas nas serras do Faial até o Funchal. Foi um decurso com muitos avanços e recuos, que acabou nas mãos do Governo, tendo apenas sido finalizada setenta e cinco anos mais tarde, em 1905. Mas na última década do século dezanove já esta “nossa” levada atravessava a Camacha e a exemplo das anteriores, sem trazer qualquer benefício para a localidade, como se pode constatar numa crónica assinada por Luiz d’O. P. Coelho, publicada em Setembro de 1894 no Diário de Notícias[iv]. Segundo o autor a Camacha “sofre o abandono dos poderes publicos gemendo ao pezo de flagrantes injustiças. Uma destas, por ventura a mais monstruosa é a privação absoluta em que se encontra, de regar com a agua da Ievada do Furado, que, segundo nos informam, ha dois anos não é utilisada pelos moradores d’esta freguezia que tão sacrificados foram nos trabalhos de exploração da mesma Levada. Convem saber- se que esta atravessa a Camacha em toda a sua extensão e vae fertilisar outra freguezias, sem que os lavradores d'aqui gosem de igual beneficio! Uma ironia pungentissima. Os terrenos occupados pela levada foram adquiridos das particulares por uma forma tão equitativa que a maior parte d'esses proprietarios nunca chegaram a vêr o preço de taes expropriações! Na illusoria esperança de que os seus terrenos seriam contemplados com parte d'essa agua o proprietarios deixaram ele reclamar o preço das expropriações”. Este foi um argumento que se repetiu em vão, ao longo de toda a década e as águas desta levada, foram ao longo dos anos consequentes, mote para muitas contendas, algumas mesmo com alguma violência. Nos dias de hoje, apenas a Levada do Caniço mantem alguma integridade. A Levada do Furado, para além de ter perdido o troço do Ribeiro Serrão, já não tem água e da Levada do Pico do Arvoredo, sobrevivem apenas alguns pequenos fragmentos. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) [i] Torre do Tombo, Provedoria e Junta Real da Fazenda do Funchal, Repartição do Erário, Ordens Enviadas à Junta, Livro segundo de registo de ordens expedidas pelo Real Erário à Junta da Real Fazenda, p. 145. [ii] RIBEIRO, João Adriano, FREITAS, Lourenço de G., FERNANDES José Baptista- Moinhos e Águas do Concelho de Santa Cruz [iii] Revista dos Tribunais- books.google.pt [iv] Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, Diário de Notícias
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Abril 2024
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