História, histórias e curiosidades
Era assim que a chamávamos, “sininhos azuis”, desconhecendo por completo se, porventura, teria outro nome. Mas, deste modo, assim nos entendíamos. A caminho de casa, vindas da escola dos Salgados, e para evitar a passagem por dentro da quinta Câmara, o caminho mais usual obrigava a subida da vereda até o caminho do hotel e por ali abaixo direitinhas à zona mais a oeste da Ribeirinha. O pequeno grupo de meninas com 7, 8, 9 ou 10 anos, caminhava de regresso a casa depois da manhã passada na escola. Nuns dias em alvoroço, noutros em silêncio; nuns dias em passo apressado na ânsia de chegar a casa, noutros a passo mais lento devido ao calor e cansaço… mas sempre parávamos ao pé de “sininhos azuis”. Não sei de quem teria sido a ideia, mas era crença generalizada entre o grupo que se espetássemos um raminho na terra do talude que ladeava o caminho e desejássemos qualquer coisa, o desejo seria realizado se o raminho pegasse. Todos os dias havia desejos. Não sei os das outras…mas os meus eram muito simples, anseios de quem tinha sete anos e andava na 2ª classe: conseguir fazer o próximo ditado sem nenhum erro; acertar nas contas todas; não ser obrigada a comer o lanche; conseguir saltar à corda a cruzar e descruzar os braços pelo menos cem vezes seguidas. Era um facto que os desejos iam acontecendo. Mas também era um facto que as estacas espetadas no solo murchavam, secavam e … nenhuma delas pegava. Todo o talude estava repleto de raminhos castanhos, com folhas mirradas e enroladas. Raminhos secos dos quais já ninguém se lembrava quais eram os seus. Sem nome comum em português, e muito menos na Madeira, vim a saber muito mais tarde que o nome que lhe dávamos corresponde, a grosso modo, ao nome vulgar usado na Austrália, a sua terra nativa: bluebell creeper (trepadeira de campainhas[1] azuis). Esta “bluebell creeper” (denominada cientificamente de Billardiera heterophylla [2]) é uma planta nativa do sudoeste da Austrália e muito comum nos eucaliptais abertos. Sendo uma espécie interessante do ponto de vista ornamental e de ampla tolerância ecológica, foi levada para outras regiões da Austrália para ser usada em jardinagem. Daí se escapou, naturalizou-se e é hoje considerada uma prioridade no controlo de plantas invasoras nos ecossistemas nativos dos estados mais orientais do continente australiano. Na europa, só é encontrada espontaneamente em Portugal, onde foi assinalada pela primeira vez como naturalizada em 1987, na serra de Sintra, pelo botânico português A. Pinto da Silva. Embora só muito recentemente esta planta tenha sido publicada como naturalizada na Madeira (2014), a sua presença já havia sido reportada como planta ornamental, no início do século XX, pelo Dr. Michael Grabham, o proprietário inglês da Quinta Grabham, na Camacha. No seu livro sobre as plantas encontradas nos jardins da Madeira, publicado em 1926, descreve a planta[3], na altura sob a designação científica de Sollya salicifolia, fazendo referência à sua ocorrência bastante comum na Camacha. Embora referisse a utilização entusiástica pelos jardineiros locais, a planta só é encontrada nas proximidades da casa onde a família Grabham viveu até por volta de 1910 e que mais tarde foi convertida em hotel-pensão (ver entrada O hotel do sr. Frederico). Trata-se de um arbusto pequeno que emite alguns ramos escandentes que se enrolam à volta de outras plantas e a permitem trepar. Com folhas verdes brilhantes, floresce a partir de maio, em inflorescências terminais com 5 a 8 flores, de cor azul intenso e que se tornam mais claras à medida que envelhecem. Sendo uma espécie capaz de se adaptar a diferentes condições ambientais, com elevada fecundidade e capacidade de regenerar após incêndio permitiu que, sem cuidados de cultivo, a planta tenha permanecido no jardim há muito abandonado e escapado para as áreas envolventes. Apesar de pouco dispersa, encontram-se algumas populações subespontâneas em áreas envolventes relativamente distantes do jardim onde terá sido introduzida. A espécie mostra, deste modo, um comportamento invasor que poderá representar uma ameaça para a flora nativa da Madeira. Ainda que a espécie se encontre atualmente restrita a uma área sem grande interesse de conservação, poderá servir de plataforma para áreas de vegetação nativa à semelhança do que aconteceu no passado com o incenseiro ou árvore-do-incenso (Pittosporum undulatum), uma espécie da mesma família. Esta árvore ornamental teria sido introduzida nos jardins das quintas da costa sul no último quartel do século XIX e é hoje uma das grandes ameaças para a floresta Laurissilva que ocorre na face norte da ilha da Madeira. Daí que a “sininhos azuis” poderá ser um motivo de preocupação e neste caso uma prioridade para intervenção precoce no controlo de potenciais espécies invasoras. E, apesar da frustração com que por vezes olhávamos os raminhos secos num vislumbre de um desejo evanescente, ainda bem que as nossas estacas não pegaram. Caso contrário, teríamos levado à disseminação desta espécie, ainda para mais longe do jardim onde foi introduzida e cultivada no princípio do século XX, acelerando a sua dispersão. Um agradecimento especial ao Professor Doutor Miguel Menezes de Sequeira, com quem foi levada a cabo a investigação sobre esta planta como planta naturalizada na Madeira e pela cedência da fotografia de detalhe das flores. Aida Nóbrega Pupo @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Bibliografia BACELAR, J. J. D., CORREIA, A. I. D., ESCUDEIRO, A. S. C., PINTO-DA-SILVA, A. R., & RODRIGUES, C. 1987. Novidades da Flora Sintrana. Boletim da Sociedade Broteriana 2(60):147-162. BACHMANN, M., & JOHNSON, R. 2010. Distribution, Outbreak Observations and Implications for Management of Bluebell Creeper 'Billardiera heterophylla' (Lindl.) L.Cayzer and Crisp, in the Green Triangle Region of South-Eastern Australia. The Victorian Naturalist 127(4):137-145. CAYZER, L. W., CRISP, M. D., & TELFORD, I. R. H. 2004. Cladistic analysis and revision of Billardiera (Pittosporaceae). Australian Systematic Botany 17:83-125. MABBERLY, D. J. 2008. Mabberley's Plant-book. (third ed.), University of Washington Botanic Gardens, Seatle, 1040 pp. PUPO-CORREIA, A. & MENEZES DE SEQUEIRA, M. 2014 First record of Billardiera heterophylla (Lindl.) L. Cayzer & Crisp (Pittosporaceae) as naturalised plant in Madeira Island (Portugal). Silva Lusitana, nº Especial, 27-34. VIEIRA, R. 2002. Flora da Madeira. Plantas Vasculares Naturalizadas do Arquipélago da Madeira. Boletim do Museu Municipal do Funchal (História Natural), Sup. 8:5-281. [1] Embora bell em inglês também signifique sino, em português às flores com esta forma é atribuída geralmente a designação de campainha. [2] Billardiera heterophylla (Lindl.) L. Cayzer & Crisp (Pittosporacea) [3] “A dainty little climber, bearing deep blue flowers, occurs sparingly in Funchal, but fairly common at Camacha” (uma trepadeira pequena e delicada, com flores de um azul intenso, que ocorre de modo esparso no Funchal mas é bastante comum na Camacha).
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Abril 2024
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