História, histórias e curiosidades
Ao longo dos, quase, trezentos e quarenta e seis anos de existência como freguesia, naturalmente que muitos incidentes hão-de ter ocorrido na Camacha que tenham despertado fortes sentimentos e divisão de opinião entre a população, particularmente as mortes inesperadas que, para além da natural consternação, constituem sempre uma fonte de muita conversa e especulação. O que fez destacar este caso foi a mera casualidade de se encontrar a gozar férias na Camacha Luiz d’Ornelas Pinto Coelho, colaborador do Diário de Notícias no final do século dezanove, que inseriu na sua crónica publicada em 29 de Julho de 1892 uma descrição do sucedido: “Um successo deploravel occorrido no domingo há noite, (24 do corrente) deixou contristados quantos d’elle tiveram conhecimento. Um grupo de pessoas de ambos os sexos, moradores nesta localidade, regressavam da festa que tivera logar n’aquelle domingo na freguezia de Santo António da Serra. Entre os romeiros que vinham montados, um pobre rapaz de nome Manoel d’ Abreu, cavalgava n’uma égua nova e mal ensinada… Ao chegar a certo ponto da estrada, o animal… começou a atirar parellhas ao vento e a revolver-se em corcovas e galões cuspindo com tanta violência o cavaleiro da sela que o deixou prostrado sem sentidos e com uma grande ferida… O que parece inacreditável é que depois de lhe fazerem umas lavagens… fossem abandonar o ferido dentro de uma cavalhariça… onde passou a noite… Quando no dia seguinte a familia o foi encontrar n’aquelle estado, quasi moribundo fel-o conduzir ao Funchal onde foi attendido pelo sr. cirurgião Santa Cruz; regressando em seguida para a Camacha, onde falleceu no dia seguinte… A justiça investiga…” Logo no dia seguinte, e pelo que se depreende com base na versão de um dos participantes no passeio, o Diario de Notícias publicou um alargado relato, de todo o sucedido: “Domingo proximo passado o snr. ManoeI Filippe de Jesus combinou com Antonio João de Freitas, José João de Freitas Junior e Manoel d'Abreu irem todos a cavallo da Camacha ao Santo da Serra. A estes aggregaram-se… Germano de Freitas, Manoel de Nobrega, Manoel Valente, José Vieira, José Rodrigues e um filho de Germano Miranda. Durante todo o dia os cavalleiros portaram-se correctamente no Santo da Serra. E' falso que tenha ahi havido qualquer rixa… D'ahi a pouco seguiram para a Camacha todos os dez cavalleiros… Na Ribeira da Boaventura, sitio do Janfrio, ficaram a dar agua aos seus respectivos cavallos, Manoel d'Abreu e Antonio João de Freitas. Os oito restantes continuaram a marcha… passaram por uma irmã, um cunhado e uma prima do mesmo Manoel d'Abreu, que seguiam a pé para a Camacha. Os oito chegaram finalmente, sem nunca se terem separado, á Levada do Pico, onde se apearam para esperarem os seus companheiros atrasados. N'esse logar ha uma mercearia… Como houvesse demora o cavalleiro Manoel Valente foi expedido para se encontrar com os dous retardados… Em seguida chegaram junto d'elles o mesmo cavaleiro e a irmã, a prima e o cunhado do Manoel d'Abreu… Os tres parentes da victima disseram que, um pouco atraz, chegou juncto d'elles a egua do Manoel d' Abreu, a qual por elles foi preza, suppondo logo que o cavalleiro tinha cahido… Prepararam-se todos os cavaleiros para retrogadar e vêr o acontecido, mas logo chegou o ferido Manoel d'Abreu appoiado por Luiz Miranda e Emgydio Teixeira (?) vindo ao lado a pé Antonio João de Freitas… O mesmo Antonio J. de Freitas contou então á vista do ferido, que se conservara de pé e perfeitamente ouvia tudo, o seguinte: que depois de terem dado de beber aos cavallos se pozeram a caminho e chegados a certo ponto a egua de Manoel d'Abreu escouceara e correra vertiginosamente; que elle continuara no mesmo passo porque o seu cavallo estava magoado n'um pé, mas que logo a uns 20 metros de distancia, apesar de já estar escuro, vira no chão o chapeo de Manoel d'Abreu que logo se apeara e apanhara o chapeo, seguindo a pé já com o presentimento de um desastre, encontrando effectivamente d 'ahi a pouco, a uns trinta metros, o seu companheiro cahido por terra n'um declive da estrada; que o quis levantar, mas elle logo tombou chegando immediatamente os outros dois viandantes a pé que todos quizeram de novo erguer o ferido mas este cahira para o lado e dissera -«que é do amigo que me fez isto?» ao que, elle companheiro supondo naturalmente uma alusão a egua, respondeu, segundo o mesmo pensamento, que o amigo fugira para deante; que por fim conseguiram pôr-se a caminho marchando o ferido a pé mas amparado. Na referida mercearia da Levada do Pico o snr. Manuel F. de Jesus comprou logo aguardente para lavar a ferida do Abreu; sobre a qual o mesmo cavaleiro colocou depois um pedaço de pão molhado em vinho que também comprou na mesma mercearia, prendendo tudo isto com um lenço. O ferido arrancou porém todo com a mão, manifestando perturbação mental, revelando ainda esta na repetição que ahi fez, da pergunta: «que é do amigo que me fez isto?»… Porfim montou o cavallo do seu companheiro Antonio J. de Freitas, indo um à redea e a exercer rigorosa vigilância. Durante o caminho só disse estas palavras: «este cavallo sempre vae cambado!» Chegados aos Barreiros, na Camacha, os cavalleiros que não tinham podido ver, por causa do sangue, a grandeza da ferida e não supunham ser cousa de summa importância entregaram o Abreu aos cuidados de José Vieira, de um tio e um primo da victima para o levarem para casa. As nove restantes pessoas seguiram para as suas casas respectivas. Depois d’isto o ferido disse que queria descançar: o tio e o primo anuindo poseram-no num estábulo e ali passaram com elle o resto da noite. Vendo finalmente a necessidade de socorros médicos, eles e o pae do ferido, que fora instruído do caso, trouxeram-no na segunda-feira para a cidade. Depoes de curado voltou para a Camacha morrendo no dia seguinte. Na quarta-feira o snr. Manuel F. de Jesus, Antonio J. de Freitas, Luiz de Miranda, o cunhado e um tio da victima, e o regedor substituto da Camacha, foram ao logar de acontecimento. Observaram o seguinte: a estrada fazia um declive: a um canto estava uma pedra bem presa ao solo mas saliente: juncto d’ella havia sangue e alguns cabelos de homem empastados e algumas crinas de cavallo. É de notar que o falecido era um bom rapaz que nunca tivera rixas com ninguém, muito menos com os da comitiva. A égua tinha vindo da serra e fora montada apenas tres vezes… Comprehende-se que se passa-se o seguinte: a égua correu vertiginosamente e o cavaleiro agarrou-se ancioso às crinas do pescoço do animal; mas na descida foi arremessado violentamente da sella, levando crinas nas mãos e batendo por infelicidade coma a cabeça n’uma pedra. Mas por outro lado disse o ferido por duas vezes esta ou phrase idêntica «que e do amigo que fez isto?» Significa isto apenas uma perturbação mental, bem possível? Será crível que o ferido nada mais dissesse se realmente houvesse um criminoso? Em todo o caso proceda a justiça...” Entre 7 e 9 de Agosto o Diário de Notícias publicou uma extensa carta do professor Manoel Jesus d’Antas de Almeida, na qual deu voz a uma facção que não aceitava a versão de acidente e acreditava ter havido mão criminosa. Ponto a ponto o professor questionou a versão relatada no Diário e alvitrou uma hipótese segundo a qual uma rixa, presumivelmente, ocorrida no arraial do Santo da Serra estaria na base da agressão, por engano, do jovem que acabou por falecer. Apesar do longo exercício de retórica a argumentação não convenceu e dias depois o Diário dava conta dessa discordância. A esta distância, de mais de um século, leva-nos a imaginar a efervescência que se vivia na localidade. Ao longo do mês Agosto, o Diário voltou a dedicar atenção ao caso por diversas vezes, referindo o esforço das autoridades para esclarecerem o caso. A ausência de posteriores notícias leva a crer que a conclusão chegada tenha sido a versão de acidente. Fernanda Nóbrega @ CAMACHA - camacha (weebly.com) Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, Colecção de Jornais, Diário de Notícias
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Abril 2024
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